El Salvador vai entrar no mapa. Está previsto para o 7 de setembro a adoção do bitcoin como moeda oficial do país ao lado do dólar americano – que já é moeda oficial desde 2001. Será o primeiro lugar do mundo a fazer isso. O experimento deixa de cabelo em pé organismos globais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. A própria população local não está confortável. De cada dez salvadorenhos, nove nada sabem ou pouco sabem sobre a criptomoeda. E 70% não querem sua adoção. Os players econômicos locais, em especial os varejistas de todos os portes, também não estão felizes em ser obrigados a aceitar bitcoin como pagamento. Neste caso, o temor é pela volatilidade. Não deve mesmo ser fácil administrar encomendas-estoques-vendas de uma empresa numa jornada, digamos, de 30 dias quando o ativo de lastro pode ter variado 22%. Ou 70%, em oito meses.

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Mas se existe um lugar no planeta para se fazer essa experiência provavelmente esse lugar é El Salvador. Pequeno e economicamente insignificante. O PIB local é de US$ 27 bilhões. O da cidade de São Paulo é cinco vezes maior. Sim, o da cidade. A população do país chega a 6,5 milhões de pessoas, equivalente à população que mora nas Zonas Sul e Leste paulistanas. Perto de 2 milhões de salvadorenhos precisaram vazar para outros lugares, em especial os Estados Unidos, para viver. Do exterior vem o dinheiro para movimentar pelo menos 20% da economia local – ano passado foram US$ 6 bilhões.

Se tudo der errado o mundo seguirá seu curso e logo ninguém vai se lembrar. O problema é dar certo. Um dos efeitos colaterais pode significar a criação de um novo e eficientíssimo destino e modelo de lavagem de dinheiro. Um paraíso fiscal virtual. Para complicar o cenário, o governo local promete dar cidadania salvadorenha a quem comprar 3 bitcoins –US$ 150 mil, cerca de R$ 780 mil. Para muitos pode servir de rota de fuga caso acordos de extradição não existam entre El Salvador e a pátria do fujão. Um risco e tanto.

Por outro lado, o país pode dar combustível a uma economia que não anda por nada. El Salvador tem o clássico e repetitivo currículo latino-americano. Mal administrado por ondas de líderes militares alinhados aos Estados Unidos, foi algo entre nada e pouca coisa. Quando os militares aparentemente deixaram o poder, há 40 anos, o comando se dividiu entre seis governos de direita (1982-2009) seguidos por dois governos de esquerda (2009-2019). Aí surgiu o fenômeno millennial chamado Nayib Bukele, eleito presidente há dois anos.

Com 40 anos, descende de palestinos cristãos, mas seu pai se converteu ao islamismo. É um influenciador digital. Tem 2,8 milhões de seguidores no Twitter. Com apenas 30 anos prefeito, por uma coalizão de centro-esquerda, de uma pequena cidade (Nuevo Cuscatlán). Três anos depois, foi eleito (pelo FMLN, partido de esquerda) prefeito da capital, San Salvador. Em 2017, rompeu com o FMLN e migrou para um de centro direita. Virou presidente em 2019. Comanda o parlamento de um jeito que provocaria dores no estômago de inveja em Jair Bolsonaro. Seus deputados derreteram membros da Suprema Corte e hoje ele preside tendo o Congresso e o Judiciário nas mãos. Assim passou a Lei do Bitcoin.

Bukele diz que a adoção do bitcoin economizará US$ 400 milhões por ano para os salvadorenhos apenas em taxas de remessas do exterior. Para fazer a população engatar sua onda, foi criado um fundo fiduciário de US$ 150 milhões. Será lançada amanhã uma carteira digital para a população. Quem baixar o app, chamado Chivo, gíria que pode ser traduzida como “legal” ou “bacana”, já recebe o equivalente a US$ 30. Parte dos US$ 150 milhões alocados no fundo do bitcoin será usado para esse crédito inicial. Além disso, serão instalados pelo menos 200 caixas eletrônicos (ATM) para transações de bitcoin.

Esse fundo também servirá para minimizar riscos à população. Ele servirá para a troca da criptomoeda por dólares a qualquer salvadorenho ou pequenas empresas que queiram ficar longe de oscilações. “Eles precisam aceitar o bitcoin, mas não precisam correr o risco”, disse o presidente Bukele. “O objetivo do fundo fiduciário não será ganhar dinheiro, mas ajudar a tornar o bitcoin uma moeda com curso legal.” Parte do apelo, o presidente sabe, vem de uma nação em que apenas 30% da população tem acesso ao sistema bancário. Agora bastará um celular e conexão à internet para se tornar bancarizado. Do ponto de vista econômico, o pequeno El Salvador será um laboratório perfeito a partir de amanhã. Bukele parece ter nada a perder. Sabe que mesmo que dê muito errado, El Salvador não sairá do lugar em que sempre esteve. E se der certo, irá para a história.