Numa quarta-feira, 19 de maio, uma até agora desconhecida deputada do Parlamento Europeu deu um importante passo para sagrar seu nome na agenda ESG (ambiental, social e de governança) mundial. María Soraya Rodríguez Ramos, uma espanhola de 57 anos e dona de longa luta da equidade das mulheres, conseguiu que o colegiado aprovasse por ampla maioria – 518 votos a favor, 97 contra e 77 abstenções – o projeto de sua autoria que defende o reconhecimento do ecocídio como crime internacional pelo Tribunal Penal Internacional, criado por meio do Estatuto de Roma em 1998. Caso o processo vá para frente, pessoas físicas poderão ser julgadas e punidas por extermínio deliberado de uma comunidade ou de um ecossistema regional como a Amazônia.

Há duas maneiras de olhar o movimento. O primeiro é pela ótica de uma real preocupação com o planeta. O outro, alimentado pelo fato de a deputada ser também membro do European Food Fórum – lobby organizado do setor agropecuário europeu –, como uma ação para proteger interesses econômicos do bloco. Independentemente do viés escolhido, o que se pode assegurar é que por trás de tudo isso há trilhões de dólares envolvidos. No caso da defesa ambiental, a transição para uma economia mais limpa tem potencial para movimentar US$ 23 trilhões em novos negócios até 2030, segundo fala da secretária de Energia dos Estados Unidos, Jennifer Granholm, durante a Cúpula do Clima (abril/20). Já se a motivação for protecionista, ao se considerar somente o agronegócio, a monta é de quase US$ 15 trilhões, valor estimado para o comércio de mercadorias agrícolas no mundo em 2025, de acordo com o The Agricultural Outlook, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura).

PRESA FÁCIL Defendido pelo presidente francês Emmanuel Macron, o movimento de criminalização do ecocídio tem na postura de Jair Bolsonaro exemplo de ouro do que deve ser combatido. (Crédito:Frederico Mellado)

Para saber como a proposta impacta o Brasil – fugindo de qualquer tentação de cair na obviedade certeira que muitos já deduziram –, basta ler as palavras proferidas pela deputada quando foi ao plenário defendê-la. “[É] Muito menos compreensível que a Comissão Europeia venha dizer que aceita este relatório e que o apoia ao mesmo tempo em que continua a negociar com o Mercosul, onde as multinacionais, o agronegócio e Bolsonaro continuam a matar ativistas ambientais e destroçar comunidades indígenas”, afirmou.

Ainda que seja retórica, os números não ajudam o País. Somente em abril, 778 km² da Amazônia Legal foram desmatados. O volume é recorde para o mês em dez anos e representa alta de 45% na comparação com abril de 2020, de acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Isso de um lado. De outro, relatório da ONG Global Witness aponta que o Brasil é o terceiro país que mais mata ativistas ambientais e de direitos civis no mundo, com 24 vítimas em 2019. O País só perde para Colômbia (64) e Filipinas (43). “O governo atual é padrão ouro do que se pode considerar como crime ambiental”, afirmou Salém Nasser, coordenador do Centro de Direito Global da FGV Direito.

ÓRFÃOS Com o isolamento do governo brasileiro quando a agenda são os princípios ESG, quem está desamparada é a iniciativa privada que trabalha em conformidade com as leis brasileiras e alinhada às boas práticas internacionais. Situação que desagrada entidades setoriais, especialmente as do agronegócio, como a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), dirigida por André Nassar. “A Europa olha o Brasil e enxerga uma desorganização generalizada orquestrada pelo presidente da República e pelo Ministério do Meio Ambiente”, afirmou.

Nome: María Soraya Rodríguez Ramos. Idade: 57 anos. Profissão: Advogada. Ocupação: Membro do Parlamento Europeu e Membro do Erupean Institue For Food. Pleito: Tornar o ecocídio crime internacional. (Crédito:Fernando Villar)

No fim das contas, o impacto será financeiro. Além de disputar os US$ 4 trilhões a mais que a agricultura mundial deve movimentar nos próximos cinco anos, o Brasil tem muito a perder, segundo a visão da advogada Fabiana Figueiró, sócia do escritório Souto Correa e coordenadora das áreas de ESG. “Se a intenção for protecionista, talvez estejamos pecando no nosso posicionamento na agenda ambiental, na forma como o Brasil se relaciona comercialmente e como tratamos a política externa”, afirmou. Em 2019, o Brasil exportou pouco mais de US$ 33 bilhões para a UE, com um saldo na balança de pouco mais de US$ 2 bilhões.

GOVERNANÇA O caminho para tornar o ecocídio crime internacional, porém, não é simples. O primeiro passo é tipificá-lo junto ao Tribunal Penal Internacional (TPI). Depois, precisa ser aprovado pela maioria dos 120 países que ratificaram o Estatuto de Roma, entre eles o Brasil. O tiro europeu parece mirar o País. Isso porque os crimes cometidos em território que não ratificaram o estatuto não poderão ser julgados – casos de China, Estados Unidos e Índia. Antônio Tovo, do escritório Souto Correa, lembra que incluímos o Tratado na Constituição. “O que significa que não podemos simplesmente ignorá-lo. Teremos que nos submeter àdecisão da maioria”, disse.

Mas, mesmo depois da proposta ser aceita, como quem é vai parao banco dos résus é a pessoa física e nunca o Estado ou empresa, o julgamento pode levar anos. Ainda que a efetividade seja questionável, eventuais estragos à marca Brasil respingarão nas empresas. Para a advogada ambientalista Sofia Bueno, a decisão contempla um novo entendimento global sobre o tema. “Um crime ambiental não é regional, já que impacta o mundo inteiro e ao criminalizar o indivíduo a iniciativa europeia pode acelerar esse entendimento”. Pelo decorrer da carruagem, Jair que se cuide.