Há 130 anos, quando a segunda Constituição brasileira começou a ser desenhada e o País caminhava para sua primeira tentativa de república presidencialista, o marechal Deodoro da Fonseca, que presidia a transição, afirmou que o Poder Legislativo “deve representar a expressão viva, palpitante, da experiência e das necessidades do povo”. Se os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado eleitos na segunda-feira (1) servem de parâmetro, o povo brasileiro é branco, de meia idade e herdeiro de empresas de agronegócio e transportes.

Em discursos vazios e genéricos, Arthur Lira (PP-AL) presidente da Câmara eleito com 302 votos, e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que recebeu apoio de 57 colegas para presidir o Senado, fizeram festa para mais de 300 pessoas, enalteceram a excelente relação com Jair Bolsonaro — e não trouxeram à tona temas urgentes para a população, como a reforma tributária, o auxílio emergencial, concessões e diminuição do Estado. Se a fala de Deodoro da Fonseca fosse levada à risca, as vozes do Congresso deveriam ecoar dois temas: transferência de renda para a população mais vulnerável e suporte para que as empresas atravessem a crise e saiam fortalecidas para gerar emprego e reativar a economia.

Na questão do auxílio emergencial, cuja polêmica envolve o valor a ser repassado e como fazê-lo sem que o governo federal ultrapasse o teto de gastos, a fala de Lira se resumiu a defender a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial, que garantiria contrapartidas caso o governo extrapole o limite legal de despesas com o benefício. Para o consultor do PSDB para assuntos econômicos na Câmara, Francisco Moura Filho, antes de discutir qualquer reforma o Congresso precisa aprovar o Orçamento. “A votação foi empurrada duas vezes ano passado. Este ano ficou para depois da eleição. O governo corre risco de não ter nem os recursos já previstos pela Lei de Diretrizes Orçamentárias, ou aprovar às pressas”, disse.

Resolvida a questão do Orçamento, o próximo passo, segundo Lira, será se debruçar no auxílio emergencial e outras medidas ligadas à pandemia. Para Rogério Negri, analista político e coordenador de campanha do ex-presidente do Senado Renan Calheiros (MDB-AL), o fator de inflexão no caso do auxílio será a relação dos deputados do centrão com o ministro da Economia, Paulo Guedes. “Guedes tem uma visão oposta aos parlamentares no quesito tamanho do estado e cargos comissionados”, disse.

De acordo com Negri, ainda que o governo tenha ganhado nas duas Casas Legislativas, esse apoio será cobrado. “Para manter os parlamentares ao seu lado, Bolsonaro precisará ferir alguns dos princípios de Guedes”, disse. Nas palavras de Lira, será feito um intermédio com o governo para que haja uma “conciliação matemática” de modo a liberar o auxílio sem romper o teto.

“A reforma tributária precisa ser debatida. O que pode avançar mais é a reforma administrativa” Arthur Lira (PP-aL), Presidente da Câmara.

COMISSÃO MISTA Outro tema bastante sensível aos empresários de todos os portes é a reforma tributária. Até agora, sob a condução de Rodrigo Maia (DEM-RJ), o tema estava sendo levado por meio de uma Comissão Mista entre Câmara e Senado, que visava unir as três propostas com maior aceitação nas Casas: a defendida por Maia (e elaborada por Bernard Appy), a apresentada pelo governo, e a preferida por Lira (criada por Luiz Carlos Hauly). Nessa fusão de propostas, a Comissão já estava em vias de entregar um relatório final que seria apreciado pelo Congresso. Pelo menos até a vitória de Lira, já que na quarta-feira (3) o presidente da Câmara afirmou que estuda dissolver a Comissão Mista para reiniciar os trabalhos de apreciação de todo o texto.

Tributarista e professor da Universidade de São Paulo (USP), Fernando Vasconcellos entende que a manobra de Lira visa manter a boa relação com o governo. “O que aconteceu foi que, apesar do discurso de avançar com esses assuntos, Lira deu dois passos para trás.” O motivo, para o acadêmico, é o assunto ser espinhoso e exigir uma mediação de conflitos que o governo e os recém empossados presidentes ainda não possuem. Segudo ele, a reforma administrativa “deve ser o termômetro para ver o apoio e influência do governo no Parlamento.”

FESTA com e sem máscara Na página oposta, Bolsonaro de mãos dadas com Lira e Pacheco. Abaixo, mais de 300 pessoas se aglomeraram na comeração do presidente da Câmara. (Crédito:Divulgação)

Se a comissão mista da reforma tributária morrer, o cenário mais provável é que as duas PECs (a 45 da Câmara e a 110 do Senado) sejam discutidas paralelamente, uma em cada Casa. Para os defensores da comissão mista, é uma volta à estaca zero. A da Câmara funde IPI, PIS, Cofins (federais), ICMS (estadual) e ISS (municipal). A do Senado, IPI, PIS, Cofins, IOF, CSLL, Cide, Salário Educação (federais); ICMS (estadual); ISS (municipal). Única parte que foi entregue pela equipe econômica ao Congresso, a proposta propõe unir PIS/Cofins em um novo imposto, chamado de Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS).

Além do auxílio e das reformas, o governo também enviou ao Congresso uma lista com 35 temas prioritários. Entre as demandas para a Câmara estão a Lei do Gás, a autonomia do Banco Central, mineração em terras indígenas, privatização da Eletrobrás, registro e posse de armas de fogo e concessões florestais. No caso do Senado, estão a partilha do petróleo e gás e o novo marco para o setor elétrico.

Com tantos interesses em jogo, outra frase, também datada da Constituição de 1891, feita em plenário pelo deputado Martiniano Prado Junior, se mostra válida 130 anos depois. “Este Parlamento é uma esfinge, que se há de decifrar nas futuras sessões legislativas. Muitos se destacarão das sombras em que se envolvem e trarão divisão e animosidade ao seio do Congresso.”