No cenário 1, o comportamento de consumo foi previsível. Veio a pandemia, os lockdowns, com a maioria das pessoas em casa, e para atender essa transformação e não perder receita, muitos serviços tiveram de mergulhar no digital. E o consumidor foi junto. Segundo pesquisa da Kantar com empresas da América Latina, o segmento de supermercados teve crescimento em todas as frentes. No primeiro semestre do ano passado, sempre sobre o mesmo período de 2019 (pré-pandemia), as altas foram de 41% no e-commerce não puro (site ou apps de redes de supermercados e hipermercados), de 10% no e-commerce puro (plataformas digitais e apps de marcas que não possuem lojas físicas) e de 34% nas compras iniciadas por aplicativos de mensagens. Esse foi o cenário previsível. O que surpreendeu foi o cenário 2: o hábito do consumidor não se alterou e as compras em supermercados feitas por canais digitais mantém-se acelerada.

Para Olegário Araújo, especialista em varejo do Centro de Excelência em Varejo da FGV (FGVcev), os cuidados com a saúde e a segurança trazidos pela pandemia provocaram essa busca. E o consumidor percebeu com ela a conveniência, o que estimulou o acesso à digitalização de pessoas que antes preferiam comprar exclusivamente em lojas físicas – por motivos diversos: hábito, ausência de prioridade em utilizar o canal digital, falta de confiança por não estar familiarizado com o e-commerce e até ausência de contato humano. “Somos seres sociais e apreciamos as interações, mas em algumas ocasiões, o online ganha em conveniência.”

Por mais que já possuíssem estruturas para a entrega de compras feitas pelos canais digitais, os grandes supermercados tiveram de investir maciçamente para atender os novos volumes de encomendas realizadas pelos 76% dos brasileiros que passaram a adquirir seus produtos de forma on-line, de acordo com pesquisa da Bain & Company. O nó, agora, passou a ser outro: a experiência ainda está longe de se aproximar da feita no modelo presencial. Do total de consumidores que não possuíam o hábito de comprar on-line, menos da metade (48%) considerara a experiência satisfatória, apesar de o índice de aprovação ter chegado a 60% entre os consumidores que pela primeira vez adotaram a compra on-line. Isso mostra que a primeira imersão agrada, mas que as demais ainda geram atritos.

NO EMBALO DA PANDEMIA Mesmo com a flexibilização das medidas restritivas impostas pela Covid-19, a Daki viu seu número de usuários aumentar quase 40 vezes na comparação entre os meses de maio de 2022 e de 2021. (Crédito:Divulgação)

ESTRATÉGIAS É esse o estágio em que os players têm olhado com mais atenção. O GPA, grupo detentor do Pão de Açúcar, expandiu em 2021 a atuação do seu serviço de entrega, o James Delivery, melhorando a usabilidade da plataforma com atendimento aos domingos, lançamento do cashback, compras via WhatsApp, pagamento por Pix, entrega agendada, express, em 30 minutos, utilização de carros elétricos, serviço Clique & Retire em até uma hora… O arsenal não para de ser reinventado. Agora totalmente integrada nas operações do grupo, a marca James Delivery, que não nasceu dentro do GPA, será extinta nas relações com o consumidor, como parte de uma reorganização societária envolvendo a empresa de delivery comprada em 2018. O conglomerado investe há muito tempo em digitalização e isso é mostrado nos resultados do terceiro trimestre de 2022, quando 11% da receita total teve origem on-line. “Queremos atingir 15% nos próximos dois anos”, disse Marcelo Pimentel, presidente do GPA.

No Carrefour, a estrutura para compras on-line ainda é mais simples. Elas podem ser feitas por meio do aplicativo ou do site da empresa francesa, com apenas duas modalidades: entrega em casa e o click e retire. Em ambos os modelos os produtos são despachados ou ficam disponíveis para retirada apenas no dia seguinte à compra. Para trazer mais agilidade e uma experiência melhor para o consumidor, a companhia firmou este ano uma parceria com a Cornershop, startup de delivery da Uber, para entregas em no máximo 15 minutos, serviço batizado como Carrefour Já.

Para o especialista Olegário Araújo, o crescimento do digital no segmento continuará, considerando que as gerações Z (nascidos entre 1995 e 2010) e Alfa (nascidos a partir de 2010) têm ganhado poder de consumo. Por isso, para ele, o modelo híbrido tende a crescer, para atender às necessidades e expectativas do consumidor. “Isso vai gerar crescimento orgânico e não exponencial.” As empresas devem se tornar mais digitais, mas sem perda de foco no modelo físico, seja abrindo dark stores (espaços exclusivos para armazenamento, separação e envio de produtos comercializados on-line), seja para entregar no melhor tempo, ou mesmo com lojas abertas ao público para atender a diferentes ocasiões de consumo e gerar experiências memoráveis.

NOVA GERAÇÃO Se grandes grupos como GPA e Carrefour levam para o digital toda a trajetória de décadas no varejo físico, o mundo on-line trouxe também seus players nativos digitais. Nessa onda, startups como Daki, iFood, Rappi e Shopper entraram ou expandiram a atuação no segmento. Com estruturas mais enxutas, sem legados culturais, e inovando em processos e tecnologia, elas ocuparam seus espaços no mercado, oferecendo conveniência, promoções e personalização com agilidade. “Este contexto foi o ambiente perfeito para o crescimento acelerado das empresas digitais”, afirmou Araújo. Como prova desse aumento, no ano passado a Shopper captou R$ 290 milhões em duas rodadas de investimentos. Há sete anos, a Shopper deu início às atividades na capital paulista com a oferta da Compra Programada. Atualmente, são mais de 120 cidades atendidas no estado de São Paulo. Além desse formato, ela lançou, no ano passado, a Compra Única e a Compra Programada Fresh, com a oferta de itens perecíveis selecionados por um chef de cozinha para os clientes terem sempre alimentos frescos e de qualidade em casa.

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“Durante as restrições sanitárias, tivemos um crescimento exponencial que só esperávamos para 2025” Luiz tavares diretor da vertical Mercado do Rappi.

O CEO da Shopper, Fábio Rodas, compartilha da opinião de Araújo de que o comportamento do cliente que teve a experiência do on-line na pandemia deve ser mantido. No início da pandemia, quando a demanda explodiu, a empresa chegou a criar uma fila de atendimento aos clientes para manter a qualidade do serviço. “Naquele momento, surfamos menos essa onda do que outros players”, disse Rodas. “Mas com a manutenção da qualidade, conseguimos fidelizar esses clientes depois do boom e continuar crescendo no mesmo ritmo.”

A startup Daki também viu a pandemia acelerar os resultados, movimento que se manteve mesmo após a flexibilização das medidas restritivas da Covid-19. Entre janeiro e outubro deste ano, o número de novos usuários dobrou em relação a 2021. Comparando apenas os meses de maio de 2022 e de 2021, o número de usuários que voltaram para o aplicativo aumentou quase 40 vezes. O faturamento veio junto e cresceu quase seis vezes nos primeiros dez meses de 2022 na comparação anual. “As vendas por delivery tornaram-se uma necessidade durante esse período e mesmo depois”, afirmou Rafael Vasto, CEO da Daki. “A opção tem conquistado cada vez mais os consumidores brasileiros.”

Empresas como o Rappi, que já prestavam o serviço de entregas de supermercado antes de pandemia, também tiveram a oportunidade de ocupar espaços até então inexplorados. “Durante as restrições sanitárias, tivemos um crescimento exponencial que só esperávamos para 2025”, disse Luiz Tavares, diretor da vertical Mercado do Rappi Brasil. Naturalmente, com o fim do isolamento social, a curva de crescimento ficou menos acentuada, mas ainda superior ao período pré-pandêmico. Hoje, segundo a startup de origem colombiana, os índices chegam a ser maiores do que os registrados no auge das restrições sanitárias da Covid-19. “Os hábitos de consumo mudaram muito, migrando bastante para o digital e isso é algo que não vai mudar”, afirmou Tavares.

CALMA E QUALIDADE A startup shopper chegou a instituir uma fila de espera de clientes para conseguir atender a todos com a mesma qualidade desejada. (Crédito:Divulgação)

Com o iFood a história foi parecida. Durante a pandemia, mais do que nunca, as pessoas experimentaram os serviços da empresa. Em 2021, a média de pedidos mensais era de 60 milhões, marca que atualmente chega a 65 milhões. Para a bandeira o segredo está na agilidade, o que favorece a aceitação pelo consumidor e gera mais lucratividade. “A gente tem registrado nos últimos meses um bom momento na nossa plataforma mesmo comparando ao período mais crítico da pandemia”, disse à DINHEIRO Arnaldo Bertolaccini, VP de Restaurantes do iFood.

SEM VOLTA A sinopse deste novo capítulo dos supermercados é que a digitalização continuará em crescimento, mas de forma provavelmente mais orgânica. O especialista em varejo Araújo diz que as pessoas têm diferentes momentos de consumo, o que é fator determinante. “Pode ser uma emergência, abastecimento do lar, amigos que chegaram em casa… São situações que determinam como vamos comprar”, disse.

Outro ponto é que a entrada dos nativos digitais no mercado de consumo contribuirá para o crescimento orgânico do e-commerce no segmento, e o avanço tecnológico com o Metaverso terá um impacto ainda maior na geração Alfa (aquela de quem começa agora a adolescência). Nesse contexto, o mundo digital continuará em ascensão, porque esses potenciais consumidores já nasceram imersos nele.