No início de 2017, o então CEO da BRF, Pedro Faria, um dos sócios fundadores da Tarpon Investimentos, reuniu-se com os principais analistas do mercado financeiro para explicar qual era a projeção de desempenho da companhia para o ano. O prejuízo de R$ 400 milhões em 2016 estava sendo minimizado pela forte recessão do Brasil. Mas, com a perspectiva de recuperação da economia (naquele momento falava-se numa expansão de 0,5% do PIB, o que acabou sendo conservadora – leia reportagem), uma das maiores produtoras de alimentos de proteínas do mundo viveria um período de bonança.

Aqui e lá fora: a nova gestão conseguiu aumentar a participação internacional da BRF, mas as marcas Sadia e Perdigão perderam espaço nas gôndolas do país para a Seara (Crédito:Divulgação e Diego Padgurschi/Folhapress)

Abilio Diniz, presidente do Conselho de Administração, tinha acabado de montar um comitê especial (chamado de steering committee), com os principais acionistas, para ficar mais próximo da gestão. Faria disse que, no plano desenhado, a companhia alcançaria uma geração de caixa entre R$ 4,5 bilhões e R$ 5 bilhões, um avanço sobre os R$ 3,4 bilhões do ano anterior. A estratégia era atacar os custos da produção, algo bastante provável em razão da projeção de uma superssafra de grãos. Mas o balanço financeiro, apresentado na sexta-feira 23 de fevereiro, mostrou uma catástrofe: a geração de caixa recuou para R$ 2,6 bilhões e a perda da BRF chegou a R$ 1,1 bilhão no ano.

No dia seguinte, uma carta dos fundos de pensão Petros e Previ, os dois maiores acionistas individuais da companhia, com 11,4% e 10,7% do capital (veja quadro “Empresa sem dono”), respectivamente, pedia a saída de Abilio e a destituição de todos os conselheiros. “É desalentador”, diz um investidor, que não quis se identificar. “A empresa decepcionou e não entregou o resultado num ano considerado bom. Imagina o que aconteceria se tivesse sido ruim?” A reação dos principais sócios da BRF pode parecer intempestiva, mas não é.

Os números do quarto trimestre são considerados a gota d’água para um descontentamento que se arrasta há quase dois anos. Nos dados referentes aos últimos três meses de 2017, por exemplo, a companhia reportou um prejuízo de R$ 206 milhões com a Operação Carne Fraca, que foi deflagrada pela Polícia Federal para investigar o envolvimento de fiscais do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) num esquema de liberação de licenças e fiscalização irregular de frigoríficos.

Detalhe: a operação aconteceu no início de março e nos dois trimestres anteriores a baixa reportada foi menor, um total de R$ 158 milhões. Três gestores, que conversaram com a DINHEIRO sob a condição de anonimato, disseram não acreditar que os efeitos tenham durado por tanto tempo. Para eles, a BRF demorou a reagir. “Fomos surpreendidos por um episódio que eu nunca imaginava ver na vida, que foi a Operação Carne Fraca”, disse Abilio, na longa introdução feita por ele na teleconferência de resultados, na sexta 23. “Vocês não fazem ideia, por mais que a gente tenha falado, o que foi o episódio da Carne Fraca para esta empresa e para várias outras. Nós tivemos problemas seriíssimos com fechamento de mercado.”

Abençoado pelo chefe: Claudio Galeazzi, um obcecado por resultado, deu à BRF a cara pretendida por Abilio e pela Tarpon ao privilegiar a gestão financeira (Crédito:Felipe Rau/Estadão)

A Operação Carne Fraca, que ainda provoca abalos e calafrios na BRF, é também a responsável pela sobrevida de Abilio no Conselho. Havia, entre os acionistas, um movimento favorável para substituí-lo nas eleições que ocorreram em abril do ano passado. Mas, como no mês anterior foi deflagrada a ação da Polícia Federal, houve consenso de que a situação ficaria mais complicada com a troca. Era preciso, primeiro, cuidar da crise institucional antes de resolver o problema administrativo. A gestão de Pedro Faria estava em xeque e o chairmam era praticamente uma voz solitária em sua defesa.

O problema é que, nos meses seguintes, Abilio foi ficando cada vez mais isolado e precisou ceder. Para alguns, ele “fritou” Faria para continuar no poder. Mas pessoas próximas afirmam que Abilio buscou uma saída honrosa para Faria, que acabou ficando de 31 de agosto até o início de dezembro como o CEO demitido à espera do substituto. O nome escolhido para o cargo, em decisão dividida no Conselho, mas com a benção do chairman, foi o de José Aurélio Drummond Junior, que havia sido presidente de Whirpool, Eneva e Alcoa.

Reputação ofuscada: Pedro Faria, que foi o CEO da BRF até o fim do ano passado, é sócio da Tarpon, gestora que ficou com a imagem arranhada (Crédito:Andre Lessa/Istoe)

A saída de Faria marcou a quebra da relação de confiança entre Abilio e a Tarpon Investimentos, gestora que costurou a ascensão dele à presidência do Conselho. No início da década de 2010, a Tarpon detinha uma relevante parcela do capital da BRF e pretendia implementar na companhia uma gestão baseada em modelos financeiros. O fundo queria replicar os bem-sucedidos casos de Hering e Cremer na empresa de alimentos. No entanto, o então presidente do Conselho, Nildemar Secches, que havia sido o responsável pela fusão entre a Sadia e a Perdigão, em 2008, resistia à mudança no modelo de negócio.

Na época, Secches argumentava que a BRF era uma empresa complexa, de cadeia longa, que não permitia utilizar essa estratégia como principal fio condutor. A Tarpon discordava e foi atrás do apoio de outros acionistas para substituí-lo. A Previ abraçou o projeto e o nome de Abilio, que vinha de uma briga desgastante com o francês Jean-Charles Naouri, do Casino, pelo controle do Grupo Pão de Açúcar, apareceu como favorito. Ele dividia as mesmas ideias da Tarpon e precisava voltar a ter destaque político no mundo corporativo. Em 9 de abril de 2013, o Conselho bateu o martelo e trocou Secches por Abilio.

A partir dessa data, há uma profunda transformação na gestão da BRF. A primeira decisão de Abilio foi mudar a presidência executiva. José Antonio Fay, que comandava a empresa desde 2008, foi substituído por Claudio Galeazzi. Mais conhecido no mundo corporativo como “mãos-de-tesoura”, pela sua obsessão com corte de custos, ele é um dos homens de confiança de Abilio desde os tempos em que comandou o Pão de Açúcar. Galeazzi disse, em uma de suas primeiras entrevistas, que faria da BRF a Ambev do setor de alimentos, com forte presença internacional. Para isso, precisava de uma companhia alinhada a esse pensamento. Em menos de um ano, nove vice-presidentes foram substituídos, 42 diretores mandados embora e quase 100 gerentes dispensados. A maior parte deles foi aterrissar na JBS, que havia acabado de adquirir a marca Seara da Marfrig, por R$ 5,8 bilhões.

A BRF entregava de bandeja para a concorrente profissionais com conhecimento de compra junto aos produtores, das principais rotas para a distribuição, o contato com os clientes e a melhor maneira de lançar um produto. “Entrei na sede da JBS e era como se eu estivesse na BRF”, conta um profissional que mudou de endereço nesse processo. Em pouco tempo, a Seara abocanhou uma fatia relevante do mercado. Sozinha, detém quase 30%. A BRF, com Sadia e Perdigão, fica com pouco mais de 50%. “O desmonte da BRF aconteceu com o Abilio e com a turma que ele levou para a empresa”, afirma Pedro de Camargo Neto, vice-presidente da Sociedade Rural Brasileira, que, por oito anos, foi presidente da Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína (Abipecs). “É uma turma arrogante que achava que não precisava aprender, pois eles sabiam mais.”

Voz contrária: Nildemar Secches era contra a estratégia da Tarpon para a BRF. Ele perdeu a disputa e a presidência do conselho foi para Abilio (Crédito:Roberto Setton)

A maior crítica à “nova” BRF era a sua atuação no campo. A companhia mudou a relação com produtores de frango e suíno. De parte importante de uma cadeia integrada, eles passaram a ser tratados apenas como fornecedores. “A empresa pensou somente no lucro e esqueceu da parte sensível”, afirma Jacir José Dariva, presidente da Associação Paranaense de Suinocultores, que tem cerca de 150 produtores integrados à BRF. “Eles abandonaram o setor e o valor do produtor integrado. No passado recente, a BRF era mais cuidadosa com os produtores. Hoje, somos vistos como prestadores de serviço e nada mais.” Uma das mudanças de maior impacto foi a gestão de estoque de milho e soja. A BRF decidiu que o período máximo dos grãos seria de 45 dias, a metade do tempo praticado pela indústria. Dessa maneira, a gestão da companhia pretendia trabalhar o fluxo de caixa e negociar preço constantemente.

O problema é que, em 2016, o valor das commodities subiu, assim como o câmbio. Sem volume e com pouca margem, a BRF não pode esperar o melhor momento para comprar e ficou com um custo maior que o dos concorrentes. A empresa alega que foi vítima de uma tempestade perfeita. “Eles erraram muito. Olha os estoques de grãos, que era de nove meses e caiu para 45 dias. Em 2016, eles compraram milho por R$ 50 a saca”, diz Losivanio Luiz de Lorenzi, presidente da Associação Catarinense de Criadores de Suínos. Quem tinha volumes maiores guardados conseguiu pagar em torno de R$ 40 a saca. “Em relação ao conselho da BRF, está provado que eles entendem de rede de varejo. Mas para administrar elos de produção tem que conhecer o setor primário. É preciso que esse momento sirva de lição, para cada vez mais, produtor e acionista trabalharem em conjunto.”

Ferido pela tesoura: o executivo José Antonio Fay, que conhecia o setor de alimentos, foi a primeira vítima de Abilio, que o trocou por Claudio Galeazzi (Crédito:João Castellano / Agência Istoé)

DISPUTA INTERNA Abilio, que detém cerca de 4% do capital da BRF, está acuado. Sua reação após a carta assinada por Petros e Previ demonstra que ele sentiu o golpe. Em vez de partir para a ofensiva, como fez na briga com Naouri, desta vez procurou colocar panos quentes. Em comunicado, o presidente do Conselho de Administração disse que divide a mesma insatisfação dos demais acionistas e que havia convocado uma reunião com todos os conselheiros para a segunda-feira 5. Às pessoas próximas, Abilio afirmou não saber o que fazer e que usaria o fim de semana para pensar. Ele desembarcou no Brasil, vindo da França, na manhã de quinta-feira 1º, após acompanhar a divulgação de resultados do Carrefour. A família Diniz possui 7,9% do capital da rede varejista e tem dois assentos no Conselho global.

O presidente do Conselho de Administração da BRF diz que não gosta “de explicações, mas de resultados”. Desde que foi aprovado para substituir Secches como chairman da companhia, os números jogam contra ele (veja quadro “Inúmeros problemas”). O desempenho da ação na bolsa de valores é ruim. Da eleição de Abilio até quarta-feira 28 de fevereiro, a BRF tinha o pior desempenho em comparação aos seus pares. Enquanto a JBS acumulava valorização de 61,4% nesse período, a Marfrig recuava 23,7% e a BRF perdia 28,9%. Num de seus primeiros discursos, Abilio disse que a ação da empresa estaria sendo negociada a R$ 80 num prazo de cinco anos, praticamente o dobro do valor daquele período.

O papel atingiu a cotação máxima em julho de 2015, negociado a R$ 72. Depois, começou a despencar. Na semana passada, estava próximo a R$ 30. Dificilmente a promessa do chairman vai se concretizar no próximo dia 9 de abril. A carteira dos fundos de investimento também está sendo modificada: os gestores mais venderam do que compraram ações da BRF (veja quadro “Vai e vem”). “Apesar de marcas ótimas e de ser uma das maiores empresas de proteína, não recomendamos comprar a ação até uma definição da assembleia”, diz Marco Saravalle, analista da XP Investimentos. “A confiança demora para voltar. Só depois de dois trimestres de bons resultados. Não é tão cedo.”

É difícil prever o que vai acontecer na reunião do Conselho da BRF. Mas Abilio perdeu importantes aliados. O fundo Aberdeen, outro acionista relevante, declarou estar unido a Petros e Previ. A Tarpon está em cima do muro e quer conhecer a proposta dos demais conselheiros antes de se posicionar. Neste momento, a gestora precisa recuperar a sua reputação abalada. As famílias Fontana e Furlan dificilmente irão contra a maioria, mas há um impasse com relação aos nomes que farão parte do novo Conselho de Administração.

A faca e a lista nas mãos: Gueitiro Guenzo, presidente da Previ (foto acima), e Walter Mendes (foto), da Petros, devem apresentar os novos nomes para o conselho da BRF na reunião de segunda 5 (Crédito:Roberto Jayme/Valor)

Era prometida a divulgação da lista na semana passada, mas Walter Mendes, presidente da Petros, e Guitiro Genzo, presidente da Previ, informaram que só farão a apresentação na reunião de segunda 5. O verdadeiro motivo seria a dificuldade em convencer alguns executivos e profissionais de mercado a fazer parte dessa mudança. Entre os nomes que teriam sido consultados estão os de Secches e Fay, que teriam se negado, neste momento, a voltar à BRF. Procurados, Abilio, a BRF e os fundos Petros e Previ não quiseram se pronunciar.

A decisão de Abilio ainda está sob suspense. Mas, se a entrevista concedida por ele à DINHEIRO em novembro de 2016 fizer sentido, ele vai se despedir da presidência do Conselho. “A BRF é uma corporação, com vários donos. Esses nomes (donos) estão representados no Conselho de Administração. Quando fui eleito para o Conselho, a primeira tarefa que me atribuí é que eu tinha de unir esse Conselho e falar a mesma língua o tempo inteiro. Na primeira reunião, eu disse para eles o seguinte: esse Conselho nunca vai a voto. O dia em que eu tiver de levar esse Conselho para voto, eu vou considerar que falhei, que eu não fui capaz de esclarecer a todos sobre os pontos que estão sendo discutidos. Foi uma falha minha. Eu não pretendo falhar. Nos mais de três anos e meio, nós fomos uma vez a voto porque eu excluí o representante de um dos fundos e ele votou não. Temos ido sempre no consenso.” Consenso não há mais. E agora, Abilio?

Colaborou: Vera Ondei