Caso um só brasileiro não tenha se envergonhado ao ver três funcionários públicos da Polícia Rodoviária Federal assassinando, numa Câmara de Gás improvisada, o nordestino Genivaldo de Jesus Santos, em Sergipe, temos um problema insolúvel como país. Goste-se do presidente JB ou não, tendo ou não se arrependido de votar nele, parece ser fato inquestionável — tipo: a Terra é Redonda — seu desprezo por comportamentos humanos básicos, empáticos e democráticos. Inexistem. O reflexo disso se resume na economia. Até houve tempos na história em que a força bruta sem a ética, e sem comportamentos morais, podiam mover impérios. Isso está em transmutação nos tempos atuais. E como o Brasil nunca foi um império, não no sentido pragmático da coisa, a gente fica cada vez mais no fim da fila dos bons países. Assim como há bons restaurantes, bons bairros, boas escolas, boas empresas, há os maus países. Somos um deles.

Genivaldo não é caso isolado. De acordo com estudo da Universidade Federal Fluminense (aqui: http://geni.uff.br/2022/ 05/06/chacinas-policiais/), entre 2007 e 2021 foram realizadas quase 18 mil operações policiais em favelas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, das quais cerca de 600 terminaram em chacinas, com cerca de 2,4 mil civis mortos — e 19 policiais. O nome disso é barbárie. E onde predomina a barbárie, não existe crescimento econômico. O mais radical dos economistas liberais, o austríaco Friedrich von Hayek, que abominava o controle, o apetite e o tamanho do Estado, afirmava que qualquer prosperidade econômica só se dissemina a partir de um ambiente juridicamente confiável. Não é nosso caso.

O cenário se complica muito porque o mundo atravessa uma crise de identidade. Crise que talvez tenha nascido, ou se potencializado, com o desmanche ocorrido a partir do crack imobiliário americano de 2008, que varreu o planeta todo. Ali a credibilidade no modelo (capitalista-liberal) foi desconstruída — com razão. Num ambiente em que bancos e agências de classificação de riscos enganaram milhões de pessoas comuns, mantendo os peixes grandes da história incólumes, inclusive com ajuda abissal do governo Barack Obama, você abre a porta para argumentos de desconfiança. Salvar a GM e grandes bancos e não salvar o pobre inadimplente ressuscitou a crença de que o modelo é feito para punir os fracos. Caldeirão perfeito para as teorias autocráticas que se proliferam agora pelo planeta.

De acordo com o relatório do Índice de Democracia elaborado pela Intelligence Unit da revista Economist (EIU), o estado da democracia global está em seu ponto mais baixo desde que o ranking começou, em 2006. A pontuação média global caiu de 5,37 para 5,28 (numa escala de 0 a 10). A maior queda desde 2010, após a crise financeira global. Isso se traduz em dois indicadores preocupantes. O primeiro é que menos da metade (46%) dos quase 8 bilhões de habitantes vive “sob algum tipo de democracia”. A maioria, não. O segundo é que mais de um terço do planeta está sob regimes considerados autoritários.

Há quatro níveis no ranking. Na primeira linha, estão as Democracias Plenas: 21 países (12,6% do total, que respondem apenas por 6,4% dos habitantes do mundo todo). Num segundo nível, onde está o Brasil, com 6,86 pontos, estão as Democracias Imperfeitas (53 países/31,7% do total, equivalente a 39,3% dos habitantes). Na sequência, os chamados Regimes Híbridos (34 países/20,4% do total, 17,2% dos habitantes). Por fim, os Regimes Autoritários (59 dos países/35,3%, 37,1% dos habitantes).

Aqui mora nosso problema.

Nenhuma pessoa séria ou que não esteja movida por má-fé haverá de discordar que nossa liderança máxima briga diuturnamente para nos jogar na linha 3, a dos Regimes Híbridos. Para figurar na linha 1 é preciso, pelas regras do ranking, preencher quatro requisitos: a) ter liberdades civis e políticas respeitadas, b) ter sistemas de freios e contrapesos governamentais, c) ter problemas limitados no funcionamento democrático, d) ter mídia diversificada e independente. Na linha 2, em que estamos, são três indicadores: a) eleições justas e livres, b) liberdades básicas respeitadas, memo que enfrentem problemas, c) conviver com problemas no funcionamento da governança.

Ou seja, ocupamos um limiar que nosso presidente se esforça para detruir. Em outras palavras, não estamos próximos de europeus e norte-americanos. Não estamos próximos da OCDE. Nesse terreno, estamos próximos da África e do Oriente Médio. Para sair desse lodaçal, e caminhar para um resgate econômico, caberá a cada agente produtivo — do profissional até a grande corporação — um comportamento ético para extirpar o que está aí. Na economia, o vetor acima de tudo é a ética.

Edson Rossi é redator-chefe da DINHEIRO.