Fundador e reitor da Universidade Zumbi dos Palmares e da Sociedade Afro-brasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural (Afrobras), José Vicente é um dos maiores nomes na defesa pela igualdade no Brasil. Para ele, se governo e empresas não se aliarem nessa luta, o País jamais terá justiça social.

Na medida em que os donos do capital aumentaram a cobrança por boas práticas ambientais, sociais e de governança como fator crítico para a concessão de crédito, as empresas passaram a divulgar ações alinhadas às expectativas do mercado. Para José Vicente, a realidade está aquém do discurso. “Mesmo que a lei seja criada para determinar o correto, na prática não é suficiente”, afirmou à DINHEIRO. Ele entende que é preciso incluir o jovem negro no ensino superior e no ambiente corporativo.

DINHEIRO — Como o senhor avalia a legislação brasileira sob ponto de vista do tratamento igualitário dos cidadãos?
José Vicente — Na verdade, temos um conjunto de legislação que perpassa por essa questão, mas nenhuma delas é dirigida para a solução do problema.

Mas e a Constituição?
A Constituição diz que o racismo é crime. Entre os objetivos da Nação está o de erradicar a pobreza e as desigualdades sociais. São ideias colocadas como “deve ser”, mas que não se materializam em ações objetivas. Do ponto de vista filosófico estamos bem, mas do ponto de vista de normas imperativas necessárias para transformar a sociedade, não.

É mais ou menos como no ditado popular: “faça o que eu digo mas não faça o que faço”?
Mesmo que no ideário a lei seja criada para determinar o que é correto, na prática não é suficiente. Some-se a isso o fato de que há uma crença de que uma eventual cobrança da lei sobre o tratamento igualitário não tem justificativa, pois há quem acredite que somos um País de miscigenados em que todos disputam oportunidades pelo mérito, sem discriminação alguma. Na verdade, não é assim que as coisas funcionam.

Quando o assunto é cultura organizacional a palavra meritocracia que o senhor acabou de usar sempre é citada como valor fundamental. O discurso vence a prática mais uma vez?
Temos normas lindas. Mas vivemos em um casuísmo, com argumentos que nos levam a conclusões falsas. Na vida real o mérito, a justiça e a igualdade servem apenas aos iguais. Vivemos um discurso que prega a amplitude, mas é limitador, cerceia e discrimina.

O que deveria ser feito por governo e empresas em direção a uma sociedade de iguais?
Ter uma lei draconiana que determinasse, exigisse e obrigasse a sua própria execução. Mais do que isso: que punisse de uma forma impetuosa aqueles que se negassem a cumpri-la. No modelo de hoje, as leis são insuficientes. Veja a que determina cotas para a inclusão dos portadores de deficiência (PCDs). A lei está lá, mas não acontece.

“A diferença da sociedade americana [para a brasileira] é que no caso de crimes contra negros, como no episódio do George Floyd, a população vai para a rua” (Crédito:Reprodução)
Mas na comparação com os PCDs, existe uma diferença, já que a comunidade negra ainda sofre com um problema anterior, que é a falta de educação formal de qualidade, certo?
O exemplo do PCD é para mostrar que nem a lei está conseguindo remover os obstáculos dos privilégios. Para funcionar, a lei teria que ser dura. Novamente, isso só prova que nossa suposta sociedade de iguais não existe. A realidade é distorcida.

No debate de uma sociedade mais igualitária, não deveríamos discutir também uma reforma educacional?
Precisaríamos discutir uma reforma social. Só assim conseguiríamos diminuir a distorção brutal que existe entre negros e brancos. O jeito é admitir que para isso seria necessário puxar quem está embaixo, com políticas, cotas ou qualquer instrumento necessário.

A pandemia piorou a situação?
Com a pandemia, a classe média negra foi prejudicada e perdeu poder de compra. Sua participação na economia é ínfima. É inaceitável que um jovem promotor comece a carreira ganhando R$ 40 mil, enquanto a maioria da população brasileira viva com menos de R$ 2 mil.

Hoje qual é a parcela da população negra e quanto dela vive na pobreza?
Somos a décima-segunda potência econômica do mundo e mantemos 70% da nossa população na miséria ou na pobreza. O censo oficial do País indica que a população de negros — pretos e pardos — representa 56% dos brasileiros. Se o recorte for apenas dentro desse grupo, veremos que a participação de negros sobe. Os números da democracia racial brasileira são realmente muito ruins. É só ver quantos presidentes de companhias são negros.

Seria possível estimar qual o impacto econômico caso a população negra hoje excluída tivesse poder de consumo?
Um parâmetro possível para dar essa dimensão é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Ao considerar a população total brasileira, o Brasil está na 100a posição, quando não se considera a população negra, o País sobe para a 74a posição. A partir desse raciocínio, se incluíssemos a parcela negra excluída na economia, subiríamos muito, pois haveria mais consumo, mais dinheiro em circulação, mais competição. Do ponto de vista econômico, excluir os negros é estupidez. E do político, também.

Nesse vácuo de políticas públicas efetivas, temos visto empresas anunciando ações específicas para a contratação de pessoas negras. Qual a efetividade de movimentos assim?
É meritório que uma, duas ou três empresas tenham essa preocupação e tomem a iniciativa de implementar alguma medida. Mas, em um olhar mais profundo, quando vemos que o Brasil tem mais de 10 mil empresas de médio e grande portes e que o número daquelas que adotam projetos de inclusão em suas decisões estratégicas cabe em duas mãos, percebemos que o impacto é muito baixo. Além disso, essas vagas são criadas para posições secundárias e até laterais à atividade empresarial. Como elas não descem na estrutura da questão, o poder transformador é realmente limitado. Ações de inclusão de negros em programas de trainees têm seu mérito. Mas se a população brasileira não está representada no alto escalão da empresa, então o modo como a diversidade está sendo tratada está errado.

Na mesma agenda da diversidade, entidades setoriais como o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) têm pressionado os Conselhos de Administração pela maior inclusão de mulheres. Essa articulação tem força para mudar a realidade do País?
Diz a máxima que “à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. Isso é só para mostrar que, no caso do IBGC, fica a dúvida sobre com base em quais premissas ele pode pressionar as empresas se a entidade não tem uma executiva negra e nem executivos negros na alta gestão. Eles perdem a legitimidade de exigir que a prática seja adotada. A inclusão de grupos como mulheres, LGBTQIA+, PCDs tende, ainda assim, a privilegiar os brancos em detrimento aos negros. Quando comparamos empresas americanas e brasileiras, o porcentual de negros por lá é maior do que aqui.

Nos Estados Unidos a inclusão se deu por lei ou por aumento da pressão da sociedade?
Pelos dois. Os Direitos Civis traziam no texto medidas que obrigavam as empresas a ter ações afirmativas nesse sentido. O uso de dinheiro público e acesso a crédito para financiamento já estão ligados à presença de negros nas estruturas empresariais. Além disso, a classe média americana tem muito mais envergadura do que a brasileira para pressionar ambientes empresariais e governo por práticas de inclusão racial.

“A única medida que o presidente Jair Bolsonaro tomou foi colocar o deputado negro Hélio Fernando Barbosa Lopes (PSL-RJ) atrás dele em fotos” (Crédito:Reprodução)

Mas a sociedade americana segue elitista e tem uma polícia constantemente envolvida com violência contra o negro, como no caso de George Floyd.
A diferença da sociedade americana [para a brasileira] é que no caso de crimes contra negros, como no episódio de George Floyd, a população vai para a rua. Aí te pergunto: quantos foram para a rua depois do massacre na favela do Jacarezinho?

Nesse contexto, o senhor acha que a morte de João Alberto Silveira Freitas em uma loja da rede Carrefour acendeu um alerta nas empresas?
Acho que foi um marco que até tem capacidade de mudar algo, mas essa transformação vai ser em longo prazo. Um sinal é que, apesar de o Carrefour ter adotado medidas importantes e ações de impacto, ele está sozinho nessa. A única coisa que vimos nos dias seguintes ao fato foi uma liga de fornecedores soltando comunicado de que não concordavam com a postura do Carrefour e anunciando que iriam realizar ações antirracistas. Passados três meses, a associação sumiu.

Uma mudança visível no mundo empresarial foi a inserção de atores negros em campanhas publicitárias. É um retrato da maior conscientização das marcas ou da pressão dos consumidores?
É o retrato da pressão do Ministério Público Federal. A maioria das empresas está com Termos de Ajustamento de Conduta (TAC): ou mudam atitudes racistas ou serão denunciadas. Isso motivou o maior número de negros na publicidade.

Passamos da metade do atual governo. Como o senhor avalia a atuação de Brasília nessa agenda?
O governo que aí está, além de ser avesso a esse tema social e a tantos outros, é comandado por uma pessoa que não tem informação e nem a compreensão para atuar na agenda. É uma ausência total. A única medida que o presidente Jair Bolsonaro tomou foi colocar o deputado Hélio Fernando Barbosa Lopes (PSL-RJ) [conhecido como Hélio Negão] atrás dele em fotos, e nomear para presidente da Fundação Palmares [Sérgio Camargo] uma pessoa que só serve para espezinhar personalidades que tanto contribuíram para a luta pelo tratamento e respeito igualitário.