Entre empresários, executivos e economistas, já virou lugar comum dizer que as empresas brasileiras têm vantagem competitiva no mercado global por atuar em meio a turbulências constantes e estar melhor preparadas para enfrentar as adversidades. Mas, mesmo acostumadas a navegar em mar revolto, elas tiveram de se desdobrar para se manter à superfície nos últimos anos, com a economia em marcha à ré, o dólar nas nuvens, o desemprego batendo recordes históricos e a renda da população em queda livre. Para completar, ainda tiveram de lidar com as incertezas e as mudanças trazidas pela pandemia.

Muitas empresas, incluindo as de grande porte, precisaram recorrer aos bancos e ao mercado de capitais para reforçar o caixa e honrar os seus compromissos. O endividamento deu um salto. Ao contrário do que se poderia imaginar, porém, os números mostram que o aumento do endividamento não é um fenômeno de curto prazo, decorrente da pandemia, mas um movimento que vem se acentuando desde o início da década passada.

Segundo um estudo feito para o Estadão pela Economatica, uma empresa de dados de mercado, a dívida bruta das companhias de capital aberto mais que dobrou em dez anos. De dezembro de 2011 a março de 2021, o total dos “papagaios” na praça passou de R$ 486 bilhões para R$ 1,213 trilhão – um aumento de 149,6%. Em termos reais (descontada a inflação acumulada, de 66,7%), o crescimentos chegou a quase 50%. Em relação ao patrimônio líquido, a dívida chegou a 115,4% em março – eram 75,9% em 2011.

Mesmo levando em conta que parte do resultado está inflada pela alta do dólar, já que muitas empresas de capital aberto têm dívidas em moeda forte e elas são obrigadas a convertê-las em reais nos balanços pela cotação atualizada, o quadro não se altera de forma significativa.

“Teve muito solavanco no meio do caminho”, afirma o economista Adriano Pitoli, ex-diretor de análise setorial e regional da Tendências Consultoria e ex-chefe do núcleo da Secretaria de Indústria e Comércio do Ministério da Economia em São Paulo. “Muitas empresas não tinham alternativa e tomaram crédito para sobreviver.”

Falta de liquidez

O levantamento incluiu 239 empresas não financeiras, de diferentes ramos de atividade, que divulgaram os balanços do 1.º trimestre de 2021 até 10 de maio. Como as dívidas da Petrobras e da Vale – de R$ 404,3 bilhões e de R$ 78,7 bilhões, respectivamente, no fim de março – provocariam uma forte distorção, as duas companhias foram excluídas da amostra. Se fossem incluídas, a dívida bruta total alcançaria R$ 1,7 trilhão, 40% a mais.

O cenário ganha contornos mais claros quando se observam também outros indicadores relacionados à situação financeira das empresas. Desde 2011, o caixa das companhias, ou seja, o dinheiro disponível para o pagamento de gastos correntes, teve uma redução de 44,1% – o equivalente a 13,6%, em termos reais. Com isso, a dívida líquida (dívida bruta menos caixa), cresceu 325% desde 2011 – 155,4% em termos reais.

Só nos últimos 15 meses, do fim de 2019 a março de 2021, em meio à pandemia, a dívida líquida das empresas listadas em Bolsa chegou a 15,1% – 8,4% reais (ver gráfico). “Dá para perceber uma intenção das empresas de fortalecer os seus balanços para enfrentar a crise. O pior de tudo seria morrer por falta de liquidez”, diz o economista Evandro Buccini, diretor de gestão de fundos de renda fixa e multimercado da Rio Bravo, empresa de investimentos da qual o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, foi um dos fundadores.

Endividamento saudável

Embora o aumento progressivo do endividamento das empresas nos últimos dez anos tenha a ver, em boa medida, com a busca de recursos para atravessar a pasmaceira e as incertezas da economia, isso não explica tudo, de acordo com os economistas ouvidos pelo Estadão. “No Brasil, a gente tem o cacoete de ver sempre dívida como algo negativo”, afirma Pitoli. “Mas não necessariamente o aumento do endividamento acende uma luz amarela.”

Em sua visão, houve uma transformação estrutural na economia na última década com a redução dos juros, principalmente depois de 2016, que também levou muitas empresas a aumentar o endividamento. Ele diz que a mudança se iniciou no fim dos anos 1990, com a liberação cambial, foi interrompida no governo Dilma, em especial no segundo mandato, retomada com o ex-presidente Michel Temer e se mantém até hoje, apesar da alta recente da taxa básica de juros (Selic). “Uma empresa toma crédito quando acredita que tem oportunidades de investimento que vão trazer um retorno maior do que o custo do endividamento”, diz. “Sob essa ótica, é natural e até saudável as empresas ficarem mais endividadas.”

Ao destrinchar os dados da pesquisa, ele observou que os setores que tiveram os maiores aumentos de endividamento, como petróleo e gás, papel e celulose, software e dados, minerais não metálicos, agronegócio e assistência médica, vêm realizando investimentos vultosos e crescendo mais do que a média da economia.

Apostas

A exceção do grupo, segundo ele, é a área de educação, que enfrenta dificuldades, em razão da digitalização crescente e da disseminação do ensino a distância, e está tendo de repensar o seu modelo de negócio. “As empresas que mais tomaram recursos de terceiros, para não depender só de capital próprio, foram as que fizeram as maiores apostas em relação ao futuro.”

Buccini, da Rio Bravo, vai na mesma linha. Para ele, o aumento do endividamento revela “uma intenção do empreendedor de se alavancar mais”. “Com a queda dos juros, muitos projetos que antes eram inviáveis se tornam mais viáveis”, afirma. “Como a gente fala, a queda dos juros aproxima o futuro do presente e é possível vislumbrar um pouco melhor o sucesso dos projetos de investimento que a empresa tem.”

Produtividade

Por ora, o alegado interesse pela realização de novos projetos e pela modernização da produção, que explicaria o aumento do endividamento das empresas, ainda não se refletiu na taxa de investimento do País. No período da pesquisa, entre 2011 e 2020, o índice foi, em média, de 17,9% do PIB (Produto Interno Bruto), abaixo da média de 18,8% registrada de 1980 a 2018, de acordo com dados do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia), ligado à FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Em 2020, com a pandemia, a taxa de investimento teve até uma queda de 0,8%, depois de ter subido 2,2% em 2019, e ficou em 16,4% do PIB, inferior à média da década. “Esse quadro aparentemente paradoxal, que contrapõe o aumento da dívida das companhias de capital aberto e o não crescimento da taxa de investimento se deve ao fato de que a gente está falando de grandes empresas, campeões nacionais, que não são uma amostra do Brasil”, diz Buccini. “Quando elas crescem, não necessariamente o Brasil cresce também. Em períodos de volatilidade, as grande empresas podem até ganhar participação de mercado, enquanto a maior parte dos negócios é afetada de forma negativa.”

Outro ponto que parece estranho é que o alegado crescimento dos investimentos também não resultou em aumentos de produtividade. Para o economista Adriano Pitoli, isso não se refletiu ainda nas estatísticas do PIB, porque nesse período o Brasil viveu “uma recessão atrás da outra” e os ganhos de produtividade só aparecem em períodos de retomada e não de baixa no nível de atividade.

Ele discorda de muitos de seus pares, para quem uma recessão tão longa quanto a que o Brasil enfrentou compromete estruturalmente o aumento da produtividade. “Há muito ganho de produtividade estocado”, diz. “Não tem como segurar ganho de produtividade. A pandemia, por exemplo, travou a economia, mas acelerou uma série de transformações digitais que representam ganhos de produtividade ainda não refletidos nas estatísticas.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.