Interromper a gravidez de forma legal é um direito em praticamente toda a União Europeia, e muitos países vêm tornando o procedimento mais acessível. Mas especialistas apontam retrocessos em alguns deles.O caso de uma mulher americana que passava férias em Malta e se viu impedida de interromper sua gravidez, apesar de o feto não ter chances de vida, é um exemplo recente ocorrido na União Europeia (UE) das possíveis consequências de uma restrição do aborto.

Andrea Prudente, do estado de Washington, estava grávida de 16 semanas e viajou com seu parceiro para Malta. Mas as férias viraram um pesadelo quando sua bolsa rompeu antes do previsto e ela começou a ter forte sangramento.

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Os médicos disseram que o feto não tinha mais chance de sobreviver, mas se recusaram a interromper a gravidez porque ele ainda tinha batimento cardíaco – apesar do risco de Prudente ter uma sépsis ou hemorragia.

Jay Weeldreyer, parceiro de Prudente, disse ao jornal Times of Malta que eles sentiram que estavam sendo “mantidos como reféns” enquanto esperavam que o feto morresse.

Entre os 27 países-membros da UE, o aborto é completamente ilegal apenas em Malta, enquanto a Polônia tem uma proibição quase total. No entanto, esses dois países são pontos fora da curva.

Da Irlanda à Espanha, muitos países da UE têm reformado as leis sobre aborto, derrubando regras que tornavam mais difícil ou ilegal realizar o procedimento em um lugar seguro.

“A tendência em toda a Europa é, de forma clara, a favor da legalização do aborto, na direção da remoção de barreiras legais e políticas”, diz Leah Hoctor, diretora regional sênior para a Europa do Centro para Direitos Reprodutivos.

Prudente finalmente conseguiu um transporte médico de emergência para Mallorca, na Espanha, para que a gravidez pudesse ser interrompida, o que potencialmente salvou a sua vida.

Mas o caso destaca como, na Europa, o aborto não é acessível a todos.

Caroline Hickson, diretora regional da Rede Europeia da Federação Internacional de Planejamento Familiar, afirma que apenas cinco dos 52 países europeus pesquisados em 2021 impõem procedimentos desnecessários do ponto de vista médico, tais como períodos de espera obrigatórios.

Ela identifica tendências divergentes. Alguns países derrubaram proibições ao aborto que existiam há muito tempo. O Bundestag (câmara baixa do Parlamento alemão), por exemplo, aprovou nesta sexta-feira (24/06) um projeto de lei para alterar o Código Penal e permitir que os médicos do país não sofram mais restrições para informar sobre a oferta de serviços de aborto.

No entanto, especialmente no Leste Europeu e na Europa Central, “retrocessos nos direitos das mulheres, e particularmente de seus direitos reprodutivos, andam de mãos dadas com retrocessos do Estado de direito e da democracia”.

Espanha: Acesso ao aborto será ampliado

Na terça-feira, o Conselho de Ministros da Espanha aprovou um projeto de lei que acaba com a exigência de mulheres de 16 e 17 anos de idade obterem o consentimento dos pais para interromper uma gravidez.

Se aprovada pelo Parlamento, a nova lei também eliminará um “período de reflexão” de três dias antes de um aborto. E incluirá dispositivos sobre saúde reprodutiva, como a concessão de licença remunerada após o aborto. De forma inédita na Europa, o projeto também institui a licença menstrual para pessoas que enfrentam sintomas graves durante o período menstrual.

Hoctor diz que o projeto é um “indicativo da tendência em toda a região para realmente melhorar e modernizar as leis sobre o aborto”. “Esperamos muito que a lei seja aprovada pelo Parlamento da Espanha.”

Mas os médicos que se recusam a realizar um aborto ainda poderão se inscrever em um registro com os nomes de quem não faz o procedimento. Esta barreira da “negação de atendimento” está presente em muitos outros países europeus, diz Hickson.

Embora alguns possam considerar 16 ou 17 anos muito jovem, Hickson diz que “as mulheres jovens precisam ter acesso a um serviço médico confidencial quando precisam dele”, citando situações familiares potencialmente difíceis.

Ela atribui o projeto de lei a um aumento do ativismo feminino e à aliança socialista democrática que atualmente governa a Espanha. O acesso ao aborto “segue em grande medida a oscilação política mais ampla de um determinado país”, afirma.

Polônia: Proibição quase total

Esse fenômeno é evidente na Polônia. Em contraste com os países europeus que expandiram o acesso ao aborto nas últimas décadas, o Tribunal Constitucional da Polônia – ele próprio um foco de preocupação da UE – emitiu em janeiro de 2021 uma decisão que resultou em uma proibição quase total ao procedimento.

O aborto agora só é permitido nos casos em que a gravidez ameaça a vida ou a saúde da pessoa grávida, ou em casos de estupro ou incesto.

A decisão provocou grande protesto, e mais de mil mulheres recorreram à Corte Europeia de Direitos Humanos. O comissário de direitos humanos do Conselho da Europa e nove importantes organizações de direitos humanos apresentaram intervenções de terceiros em nome dessas mulheres.

“Como um ponto fora da curva na região europeia, a Polônia é o único país-membro da UE nas últimas décadas a retirar de sua legislação um fundamento para o aborto legal”, diz Hoctor. “A Polônia está realmente em descompasso da tendência geral.”

Tanto Hoctor como Hickson expressam preocupação de que a proibição também se aplica às refugiadas ucranianas na Polônia, algumas das quais são sobreviventes da violência sexual.

Quando mulheres ou meninas refugiadas atravessam a fronteira para a Polônia, Eslováquia ou Hungria, “elas estão se movendo para alguns dos contextos mais restritivos da região em relação ao aborto”, diz Hoctor.

Hungria: Obstáculos indiretos

Embora o aborto seja legal na Hungria, Hoctor diz que a lei ainda é muito restritiva ao impor um período de espera obrigatório, requisitos rigorosos de aconselhamento e uma série de outras barreiras, incluindo o fato de que a assistência ao aborto não é coberta pelo seguro de saúde público ou por subsídios.

Hickson descreve a Hungria como um país que “impõe muitas barreiras relacionadas que, na prática, tornam o acesso [ao aborto legal] muito mais difícil”.

Na Hungria, as restrições ao aborto também estão fortemente ligadas à agenda do premiê Viktor Orbán, diz Hickson.

Irlanda: Referendo reflete reformas

A Irlanda reformulou suas leis sobre o aborto desde uma emenda constitucional de 1983, promulgada durante a onda católica e que proibia o aborto. Em um referendo em 2018, a população votou em massa para reverter a proibição.

“Foi um reconhecimento real, pelo povo irlandês e pelo Estado irlandês, da necessidade de tratar o aborto como um cuidado essencial de saúde”, diz Hoctor.

“Embora a mudança na Irlanda tenha sido fenomenal e incrivelmente importante, uma série de barreiras ao acesso ainda são mantidas na legislação”, acrescenta, indicando que um processo de revisão atualmente em andamento poderia melhorar a situação.

Refletindo sobre a situação na Europa como um todo, particularmente considerando a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que derrubou o direito ao aborto, Hickson afirma: “Precisamos reconhecer que, sim, o progresso é frágil, e nunca devemos descansar”.