Durante um emocionado discurso no Parlamento inglês na quarta-feira 4, o deputado conservador Sir Nicholas Soames esqueceu a tradicional fleuma britânica ao anunciar que, após 37 anos de carreira, ele não concorreria à reeleição. E aproveitou para atacar a maneira como o Brexit está sendo discutido ao longo dos últimos três anos. “Estou realmente muito triste por ter terminado assim”, disse ele, sem conter as lágrimas. “Espero que esta Casa redescubra o compromisso e a humildade que nos permitirão trabalhar a favor do País, algo tristemente negligenciado por dedicarmos tanto tempo a combater o Brexit.” Seu avô teria aplaudido. Soames é neto de Winston Churchill, primeiro-ministro que garantiu a sobrevivência da Inglaterra e da democracia na Europa, ameaçada pela Alemanha nazista. A diferença, agora, é que a ameaça à multissecular democracia inglesa não vem de fora, mas do próprio Partido Conservador.

A questão que dividiu as Ilhas Britânicas é a aproximação da data limite para o Brexit, o desligamento da União Europeia por parte do Reino Unido. Quando o Brexit foi surpreendentemente aprovado em um plebiscito em 2016, levantaram-se várias dúvidas de como isso ocorreria. Nos três anos após o pleito, a ex-primeira-ministra Theresa May tentou, sem sucesso, encaminhar o assunto. Há pouco mais de um mês, ela foi substituída pelo radical Boris Johnson, o que só piorou o processo.

Parecido com o presidente americano Donald Trump pelos cabelos desgrenhados e ideias idem, Johnson enrolou-se nas bandeiras da defesa radical do Brexit e de um alinhamento automático com os Estados Unidos, teses caras à sua base eleitoral. Para aprová-las, ele vem protagonizando cenas dignas de repúblicas bananeiras. Ao longo da semana, expulsou 21 deputados históricos de seu Partido Conservador, e mais de um analista político avalia que ele está preparando o lançamento de um Partido do Brexit. Na quarta-feira 4, porém, Johnson amargou duas derrotas. O Parlamento bloqueou seus planos de concluir o Brexit no dia 31 de outubro “com ou sem acordo” com as autoridades em Bruxelas. E também adiou sua tentativa de convocar uma eleição-relâmpago para 15 de outubro, duas semanas antes do prazo final, para garantir a saída por meio da formação de uma nova maioria.

POPULISMO As cenas da quarta-feira motivadas por Johnson mostram que o Brexit segue empurrando a Inglaterra para longe de suas tradições democráticas. Séculos de regras tácitas e convenções mantiveram baixo o tom dos debates, mesmo em momentos de crise. Porém, desde o plebiscito, a Grã-Bretanha se tornou, involuntariamente, um laboratório político. Em teste, o quanto uma democracia parlamentar estabelecida pode ser abalada pelo populismo.

Contra o Brexit: temores de desemprego e de escassez de alimentos (Crédito:Wiktor Szymanowicz/NurPhoto)

Essa experiência vem custando caro. Em seis meses, a libra desvalorizou-se 7,5% em relação ao dólar. Também há temores sobre o desaquecimento da economia britânica e do efeito disso sobre os países do Continente. E há outros desdobramentos. A ex-deputada e enóloga argentina Suzana Balbo avalia que as divisões no Velho Continente afetam a economia como um todo. “Como a Europa está dividida e fraca, não há uma contrapartida à disputa entre China e Estados Unidos, o que acaba acentuando a guerra comercial”, diz ela.

Com a incerteza, o temor é geral. Desde o plebiscito, a imprensa britânica traça cenários apavorantes do que poderia ocorrer se o Reino Unido deixasse a Europa sem acordo. Atualmente, o trânsito de pessoas e produtos é praticamente livre. Não há barreiras fronteiriças e o comércio flui sem restrições. Restabelecer um sistema rígido de controle poderia levar a enormes congestionamentos de caminhões em postos de fronteira recém-instalados nas duas margens do Canal da Mancha, provocar o caos em aeroportos e em estações de trem e, na pior das hipóteses, causar escassez de alimentos e remédios. Haveria outro problema: mesmo sendo um arquipélago, o Reino Unido tem uma fronteira terrestre com a Europa. Pelo acordo, a Irlanda do Norte sairia da Comunidade, mas a República da Irlanda, que fica na mesma ilha, manteria seus vínculos com a União Europeia. Entre os dois países há 208 cruzamentos fronteiriços formais e centenas de outros informais. Estabelecendo um controle aduaneiro custaria caro e, para a polícia, criaria uma galeria de alvos para terroristas.

Todas essas questões permanecem em aberto, e não há sinais de acordo em breve. As autoridades em Bruxelas assistem à disputa com perplexidade. “Observar como o primeiro-ministro se comporta, tanto ao Parlamento quanto com os oponentes seu próprio partido não ajuda a construir confiança”, disse Norbert Röttgen, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Parlamento alemão. E, germanicamente pragmático, acrescenta: “Preferimos ficar de fora dessa selva.”