A reforma tributária sempre foi a mais difícil na agenda dos governantes brasileiros. Isso não é um acaso. O sistema tributário do País é um retrato fiel da sociedade brasileira. É desigual, injusto e tem problemas estruturais gravíssimos. Os mais visíveis são a renda, a informalidade e a complexidade. A renda brasileira é baixa, o que limita a arrecadação. A informalidade na economia é elevada, o que facilita a sonegação. E o sistema tributário é complexo, um cipoal repleto de exceções e casuísmos que foi sendo construído e remendado durante as três últimas décadas. Sua estrutura bizantina gera um contencioso tributário enorme, que atravanca o Judiciário e torna imprevisíveis a vida dos contribuintes e o orçamento do governo.

Reformar esse monstrengo exige competência técnica e traquejo político, pois não há medida mais impopular do que aumentar impostos ou passar a tributar quem era isento. Para levar uma reforma a cabo, tanto os contribuintes (e seus representantes) quanto o governo têm de fazer concessões. É preciso buscar consensos, costurar acordos e pensar em um bem maior e difuso: reduzir a desigualdade social e aumentar a competitividade da economia. Por isso, a proposta de reforma tributária enviada ao Congresso pelo Ministério da Economia na noite da sexta-feira (25) pode ser classificada como indecente.

Votação no Congresso tramitação será longa e sujeita a uma forte atuação dos lobbies. (Crédito:Pablo Valadares)

O único objetivo do governo foi aumentar a arrecadação, sem discutir o impacto das mudanças sobre a economia. Em suas 52 páginas, o Projeto de Lei nº 2.337/2021 altera as regras do Imposto de Renda (IR) das pessoas físicas e das empresas. No caso dos indivíduos, a proposta agita uma bandeira populista. Tenta vender como avanço um muito adiado ajuste na tabela de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física (leia mais sobre isso adiante).

No caso das empresas, porém, a sugestão de reforma do ministro Paulo Guedes vai contra qualquer princípio econômico liberal. Ela eleva a tributação sobre a produção e o trabalho sem oferecer nenhuma contrapartida. Alivia a profundidade da mordida do Leão sobre o ganho dos investimentos. E favorece o rentismo que o ministro Guedes — oriundo do mercado financeiro — sempre declarou querer combater. “O que a sociedade esperava era uma proposta de reforma tributária que permitisse a recuperação da economia e estimulasse as empresas, mas o texto veio na contramão dessas expectativas”, disse à DINHEIRO o jurista e professor de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo, Heleno Torres. “A exposição de motivos do projeto não traz qualquer indicativo de uma política tributária voltada à recuperação das empresas e à retomada da economia em um cenário pós-pandemia”, afirmou.

Uma das alterações esperadas era a tributação dos dividendos pagos pelas empresas. Isso está no pacote, mas de maneira distorcida. Aqui faz-se necessária uma rápida explicação. Dividendos parecem ser algo restrito aos investidores em companhias abertas, mas eles são a principal maneira de os empreendedores remunerarem seu trabalho. A atividade empresarial gera dinheiro. Depois de pagar custos e impostos, sobra o lucro. A fatia dele que vai para o bolso do empresário são os dividendos. No sistema atual o lucro é isento de impostos. Não é injustiça, mas praticidade. É muito mais simples para a Receita Federal calcular os impostos a partir do faturamento. No Brasil, a maioria das empresas opera no regime do Lucro Presumido, em que a alíquota média de Imposto de Renda é de 34%. Como o imposto já foi descontado antes de a empresa apurar o lucro, o dividendo é isento. O tributo já foi pago antes, sobre o faturamento. Fim da explicação.

Alice Vergueiro

“A economia brasileira é fechada e oligopolizada. É provável que haja um repasse do aumento dos impostos para os preços” Roberto Quiroga Sócio Diretor do escritório Mattos Filho.

Pela proposta, ao receber os dividendos o acionista será tributado em 20%. Em contrapartida, o governo prometeu reduzir em cinco pontos percentuais a alíquota que incide sobre o faturamento. Na média, uma empresa que atualmente paga 34% passará a pagar 31,5% em 2022 e 29% a partir de 2023. Outra mudança é a extinção, a partir de janeiro de 2022, dos Juros Sobre Capital Próprio (JCP). Exclusividade brasileira, o JCP é uma maneira de as empresas colocarem a remuneração dos acionistas em seus custos, reduzindo a arrecadação de impostos sobre o lucro, que é cobrada na Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

MAIS IMPOSTO Nos últimos meses, o governo esgrimiu dois argumentos em favor dessa proposta. Um deles é que todos os países desenvolvidos tributam os dividendos. Verdade. O outro: é mais justo deslocar a mordida do Leão dos assalariados para as empresas, pois isso melhoraria a distribuição de renda. Teoricamente, também é um argumento defensável. No entanto, o governo omite dois fatos importantes. “Os países da OCDE, mais desenvolvidos, de fato tributam os dividendos. Porém, neles o imposto corporativo médio é de 21,5%, e não de 34%”, disse a advogada tributarista Ana Cláudia Utumi. Assim, ao reduzir em cinco pontos percentuais essa alíquota e passar a tributar os dividendos, a proposta na prática aumenta a carga tributária das empresas. Em sua avaliação, uma empresa do setor de serviços que acerte suas contas com o Fisco no regime de Lucro Presumido poderá amargar uma elevação de 25% na alíquota total de imposto. Um aumento dessa magnitude, sem contrapartidas e sem uma regra de transição que dê tempo às empresas para se adaptar é mortal. A falta de tempo para adaptação é uma das queixas do CEO da Wiz Soluções, Heverton Peixoto, colunista da DINHEIRO. “Grandes conglomerados, que possuem arquiteturas organizacionais com diversas empresas, serão fortemente impctados pela tributação dos dividendos”. Para ele, a implementação em 2022 irá inviabilizar uma série de empresas. “Principalmente as que têm subsidiárias”.

O argumento de que é mais justo tributar as pessoas jurídicas em lugar das físicas também é frágil. Segundo o advogado tributarista Roberto Quiroga, Sócio Diretor do escritório de advocacia Mattos Filho, o governo está dando com uma das mãos e tomando com a outra. “A economia brasileira é fechada e oligopolizada”, disse. “Provavelmente haverá um repasse desse aumento de impostos para os preços cobrados do consumidor.” Com a desvantagem de que a proposta desincentiva os investimentos. Quiroga disse que um dos segmentos prejudicados seria o de private equity, especialmente com a proposta de impedir que o comprador de uma companhia use o ágio para reduzir o imposto a pagar no futuro.

Não é exagero do advogado. Segundo Piero Paolo Minardi, sócio-diretor na Warburg Pincus e membro do Conselho Diretivo da Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCap), a proposta é um tiro certeiro contra a atividade. Para ele, a expectativa era de um pacote liberal, mas a proposta parece eleitoreira. “O texto pune o capital de longo prazo e é assustador para a indústria de private equity, que desde 2016 participou de 50% das aberturas de capital no Brasil, ajuda as empresas, traz benefícios para o País e merecia ter sido mais bem-tratada”, afirmou. “O investidor estrangeiro olha e diz: ‘Eu fiz tudo certo e fui penalizado. Agora a lei muda. Por que eu investiria?’”

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“Os países desenvolvidos taxam os dividendos das empresas, mas o imposto corporativo é bem menor que no Brasil” Ana Cláudia Utumi advogada tributarista.

Outros segmentos também apontam problemas. “As propostas buscam extrair das empresas maior arrecadação no curto prazo”, declarou em nota a Associação Brasileira das Companhias Abertas, que representa as empresas listadas em bolsa. “A tributação em cascata dos dividendos em 20% e o fim da dedutibilidade do JCP aumentarão, em termos reais, a carga fiscal sobre empresas e investidores, o que afastará de maneira geral os investimentos no Brasil.”

Pensa que acabou? Tem mais. Boa parte do discurso governista de beneficiar a produção em lugar do rentismo foi cancelada em um aspecto específico dos produtos financeiros, os Fundos de Investimento Imobiliário (FII). Pela lei atual, seus rendimentos são isentos de imposto, diferentemente dos demais investimentos. Por isso, os FII tornaram-se imensamente populares nos últimos tempos devido à queda recente dos juros. Há cerca de 1,4 milhão de investidores neles, pouco menos da metade do total de brasileiros que possuem ações. Na proposta, o governo tributou os rendimentos do FII. Mas manteve isentos os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI), que formam boa parte das carteiras dos FII. “Isso deverá comprometer o fluxo de recursos para o setor imobiliário”, disse o jurista Heleno Torres.

Uma das poucas facetas positivas do pacote é uniformizar a tributação sobre os investimentos, principalmente fundos e Certificados de Deposito Bancário (CDB). Em vez de quatro alíquotas, de 22,5% a 15% dos lucros (dependendo do prazo), entra só a alíquota de 15%. Com exceção dos dividendos, tributados em 20%.

POPULISMO Para aumentar a incerteza, a proposta terá de passar por uma longa tramitação no Congresso. Aí, deverão entrar em cena as pressões setoriais e os lobbies. “Essa proposta não é definitiva, ela é a primeira versão que foi apresentada ao Congresso, vai tramitar nas casas legislativas, que como sempre vão estar atentas às demandas e observações da sociedade”, disse o economista e assessor para assuntos estratégicos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), André Rebelo.

Na avaliação de Paulo Gama, analista político da XP, a proposta veio propositalmente com uma boa dose de gordura para ser cortada durante o processo de negociação. Isso já começou. Na terça-feira (29), Guedes disse que poderia apressar a redução da alíquota de IR das empresas, e reduzir dos atuais 34% para 29% já em 2022. Muito mais declarações como essa serão ouvidas nos próximos dias.

Adriano Vizoni

“A exposição de motivos do projeto não traz qualquer indicativo de uma política tributária voltada à recuperação das empresas” Heleno Torres professor de direito financeiro da USP.

Um dos principais argumentos do Executivo, que será defendido pelos apoiadores do governo no Congresso, é que o aumento da tributação sobre as empresas permitirá aliviar a carga fiscal sobre as pessoas físicas. Especificamente, com a elevação do valor das faixas de isenção. Atualmente, não pagam Imposto de Renda na fonte os trabalhadores formais (com contratos regidos pela CLT) com salários mensais até R$ 1.903,98. Acima disso, até o limite de R$ 2.826,65 mensais, a alíquota é de 7,5%. Pela proposta de Guedes, a faixa de isenção será elevada para R$ 2.500. O argumento do governo, que consta da exposição de motivos, é que a correção vai ampliar a isenção dos atuais 10,7 milhões de contribuintes assalariados para 16,3 milhões. Tudo muito bonito — no discurso.

CORREÇÃO Na fria realidade dos números, segundo cálculos do Sindicato de Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), esse aumento da faixa de isenção está longe, muito longe, de compensar as perdas acumuladas desde a estabilização da economia. Em 1996, a Receita Federal deixou de corrigir automaticamente os limites de isenção pela inflação. Houve apenas cinco atualizações monetárias, a mais recente delas em 2009. De acordo com o Sindifisco, nesse período a correção da tabela do imposto foi de 109,6%, enquanto a inflação acumulada pelo IPCA até maio deste ano é de 361%. Para manter os mesmos parâmetros de 1996, teriam de ser isentos os salários até R$ 4.036.

O processo promete ser longo, e está apenas em seu início. Muito pouco do texto da proposta pode ser considerado definitivo. Em qualquer sociedade moderna em que a relação entre os Poderes é republicana, discutir propostas e fazer pressões faz parte. Porém, nada disso está no texto divulgado na noite do dia 25. Com distorções e exageros, sem prazo de transição e taxando pesadamente as empresas, a proposta de reforma tributária só pode ser classificada como indecente.

Colaborou Ingrid Biasioli