Em meio à paralisação quase total do setor aéreo por causa do avanço do coronavírus e da inevitável queda na economia global, a Embraer busca alternativas para amenizar o enorme impacto provocado pela decisão da gigante americana Boeing de encerrar o processo de união na área de aviação comercial. O namoro, iniciado em julho de 2018, envolvia US$ 4,2 bilhões (o equivalente a R$ 22,4 bilhões). O inesperado divórcio, anunciado no sábado 25, agora coloca a companhia brasileira justamente no caminho da China, segundo maior mercado de aviação do mundo, em uma possibilidade de acordo com a estatal China Commercial Aircraft (Comac).

“Há males que vêm para o bem. A China é o melhor alvo para a mira brasileira neste momento de expansão neste tipo de mercado”, disse o vice-presidente da República Hamilton Mourão, durante videoconferência na segunda-feira 27, promovida pela consultoria Arko Advice, que enxerga a rescisão do acordo com a Boeing como uma “oportunidade” para a empresa brasileira. O presidente Jair Bolsonaro também chegou a falar em nova aliança, sem mencionar qualquer outro parceiro. “Se o negócio for desfeito, talvez se recomece uma nova negociação com outra empresa”, declarou o presidente do Brasil.

Boeing e Embraer planejaram uma joint venture composta pelo negócio de aviação, já com nome Boeing Brasil-Commercial. A expectativa era de que a nova empresa faturaria cerca de US$ 150 bilhões anuais, a partir do terceiro ano. Pelo acordo, a Boeing assumiria 80% dos negócios da Embraer na aviação comercial. As áreas de defesa e avião executiva não estavam no pacote. Entre especialistas, a união seria importante para a Embraer, que aumentaria sua participação e ganharia mais competitividade em um mercado acirrado. A Airbus se tornou, no ano passado, a maior fabricante de aviões, com mais de 860 unidades entregues, deixando a Boeing em segundo.

A brasileira Embraer é a terceira maior fabricante do mundo. Em 2018, de 47% da receita oriunda da aviação comercial. A canadense Bombardier se uniu a Airbus, em 2017, para fabricação de jatos comerciais, criando outra potência no setor de aviação. No ano passado, quando a Embraer completou 50 anos de sua fundação, a companhia anunciou investimentos de cerca de R$ 160 milhões na expansão de uma planta em São José dos Campos, no interior paulista, já que a atual sede seria direcionada para a nova companhia. Dos 18 mil trabalhadores da empresa nacional de aviação, metade iria para a joint venture a ser criada com a Boeing.

Privatizada em 1994, no fim da gestão de Itamar Franco – e já no processo de transição para o início do mandato de Fernando Henrique Cardoso –, a Embraer ainda depende de aval do governo federal para qualquer tipo de venda, já que a União ficou com ações chamadas de golden share, que garantem a possibilidade de veto em uma transação desse tipo. A chinesa Comac foi criada em 2008, justamente para produzir aviões capazes de competir com os modelos de Boeing e Airbus, principalmente o 737 e o A320.

TURBINA DESLIGADA A Embraer havia anunciado investimentos de R$ 160 milhões na expansão de uma planta em São José dos Campos (SP), já que a atual sede seria direcionada para a nova companhia. (Crédito:Claudio Gatti )

DISPUTA Independentemente desse possível novo acordo, a Embraer abriu procedimento arbitral contra a Boeing pela decisão unilateral da ex-parceira. A companhia de aviação brasileira ainda diz que cumpriu as obrigações previstas no Acordo Global da Operação (MTA) e que adotará “todas as medidas cabíveis contra a Boeing pelos danos sofridos como resultado do cancelamento indevido e da violação do MTA”. Georges Ferreira, consultor de direito aéreo e árbitro da Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada, sugere rapidez na decisão. “Estamos falando de uma empresa consolidada e bem gerida, o que ajuda na retomada, seja qual caminho for buscar a partir de agora, entre buscar um novo parceiro e investir no segmento que ela já conhece.” Para o especialista em arbitragem internacional Erico Carvalho, sócio da Advocacia Velloso, o caminho adotado pela Embraer é o correto para discutir como ficam os investimentos já iniciados por conta da parceria. “Há uma cláusula compromissória que existe no MTA que afasta a possibilidade de atuação do poder judiciário e remete às discussões efetivamente para a arbitragem”, diz. “Para ser indenizada, a Embraer deverá provar que a Boeing agiu mediante fraude ou praticou algum ato deliberado.”

Sem dar detalhes, a americana alegou descumprimento de cláusulas do acordo para justificar a rescisão. “Há vários meses temos mantido negociações produtivas a respeito das condições de contrato que não foram atendidas, mas em última instância, essas negociações não foram bem-sucedidas”, diz em nota Marc Allen, CEO da Boeing. “É uma decepção profunda. Entretanto, chegamos a um ponto em que continuar negociando dentro do escopo do acordo não irá solucionar as questões pendentes”. A Embraer nega qualquer irregularidade no cumprimento do contrato e critica a decisão. “A Boeing fabricou falsas alegações como pretexto para tentar evitar seus compromissos de fechar a transação e pagar à Embraer o preço de compra”, diz o presidente da companhia, Francisco Gomes Neto, em nota. “A empresa adotou um padrão sistemático de atraso, devido à falta de vontade em concluir a transação.”

“A Boeing fabricou falsas alegações como pretexto para evitar seus compromissos” Francisco Gomes Neto, presidente da Embraer. (Crédito: Sefa Karacan)

DIFICULDADES Para Flávio Riberi, coordenador do MBA de Contabilidade e Finanças da Faculdade Fipecafi, a saída da Boeing está muito atrelada à questão econômica. “A operação foi realizada em 2018 e em dois anos pode ter acontecido algo. Somado a isto, a empresa americana escolheu a opção mais barata: melhor declinar agora do que insistir diante da crise provocada pela Covid-19”. Já Rodrigo Moliterno, head de renda variável da Veedha Investimentos, acredita que a atitude da Boeing está totalmente atrelada ao cenário econômico instável provocado pelo coronavírus. “Podem até existir alguns conflitos e ajustes, mas o que determinou a atitude final da Boeing foi a incerteza. Eles preferiram poupar o caixa porque o setor de aviação vai levar alguns anos para se recuperar da crise”, diz o analista.

Allen, CEO da boeing “É uma decepção profunda. Entretanto, chegamos a um ponto em que continuar negociando dentro do escopo do acordo não irá solucionar as questões pendentes” (Crédito:Divulgação)

A Boeing vem enfrentando um difícil momento financeiro, não só pelo impacto da Covid-19, mas por problema de imagem, provocado por dois acidentes com seu primeiro modelo, o 737 MAX. O governo de Donald Trump estuda formas de ajudar a companhia. Na quarta-feira 29, a empresa divulgou balanço do primeiro trimestre, que registrou prejuízo líquido de U$ 641 milhões, o equivalente a R$ 3,4 bilhões. Os números da empresa brasileira referentes ao período ainda não foram divulgados, mas a Embraer também não está tão distante de problemas. Desde o início da pandemia, o processo de queda das ações da companhia se intensificou. No dia 24 de março, quando passou a valer a quarentena no estado de São Paulo, o papel da companhia na B3 (antiga Bovespa) era comercializado a R$ 9,03. Na segunda-feira 27, primeiro dia útil após o anúncio da Bovespa, a ação estava custando R$ 7,66.

A agência de risco Fitch Ratings mudou a nota de crédito da Embraer de BB+ para BBB- e alterou de positiva para negativa a perspectiva em relação ao mercado internacional de aviação. Segundo a agência, somente neste ano as entregas de jatos comerciais da Embraer devem cair 50%, enquanto os modelos executivos devem ter redução de 15% a 20%. O analista de mercado da Toro Investimentos, Daniel Herrera, diz que o acordo com a companhia dos Estados Unidos poderia não teria resultado positivo. “O contrato foi firmado para bater de frente com a gigante formada pela fusão da Airbus e Bombardier e seria uma competição muito acirrada”, afirma. “A situação da Embraer é muito incerta.”

A questão agora é saber quais ventos serão mais favoráveis para a empresa, em um cenário de dificuldades pela expansão da crise de saúde, o consequente impacto nas finanças e até mesmo os últimos episódios da crise política que começa a ganhar ainda mais corpo. O medo é se esses ares podem ser transformar em um furação para o futuro da cinquentenária companhia brasileira.