O edifício-sede da imobiliária digital QuintoAndar, na Vila Madalena, em São Paulo, tem quase tudo para fazer o funcionário feliz. Ao estilo Google no Vale do Silício, áreas de relaxamento com sofá macio, pufes coloridos para descanso das pernas e máquinas automáticas de snacks e bebidas… Tudo em um ambiente claro, arejado e acolhedor. Mas em 13 de abril deste ano, em todos os departamentos da empresa, ninguém estava com sorriso no rosto. Naquela manhã, a companhia anunciou corte de 160 pessoas, cerca de 4% de seu quadro de funcionários. Um susto para os cerca de 4 mil empregados que até então acreditavam que o maior desafio era contratar, não demitir. Curiosamente, as demissões ocorreram após o QuintoAndar receber US$ 420 milhões de aporte, em 2021. Com o cofre cheio, o valuation da companhia chegou a US$ 5,1 bilhões.

O exemplo do QuintoAndar não chamaria a atenção se fosse um caso isolado. Não é. A primeira metade de 2022 ficou marcada por um movimento atípico nas startups brasileiras: demissões em massa, cancelamento de projetos e cortes de custos. Cenário oposto à euforia vivida nos últimos anos, com captações milionárias em rodadas de investimento e recrutamento de funcionários aos montes. Quase de forma sincronizada, outros três unicórnios (startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão) seguiram o mesmo caminho: a fintech Ebanx, a imobiliária Loft e a plataforma de carros usados Kavak.

Juntas, elas demitiram mais de 1 mil empregados numa única tacada. E eles não foram sozinhos. Os números finais estão sendo compilados, mas dados preliminares da plataforma Layoffs Brasil, que mede o ritmo de contratações e demissões das empresas da chamada Nova Economia, indicam que 4 mil pessoas foram desligadas das startups brasileiras no primeiro semestre de 2022. As empresas, de forma geral, alegam que tiveram de fazer cortes para preservar a saúde financeira e ajustar a força de trabalho e a folha de pagamentos à demanda do mercado e de cancelamento de projetos. O que, de certo modo, mostra um grau de maturidade na gestão em empresas que, até pouco tempo atrás, sequer existiam.

A equação é simples: economia em ritmo mais lento gera menos investimentos, e menos investimentos representam menor demanda por mão de obra. Essa dinâmica está mais do que evidente no mais recente estudo da Distrito, empresa brasileira de inteligência de mercado. A consultoria concluiu que os aportes em startups brasileiras desabaram. No primeiro semestre de 2021, foram US$ 5,6 bilhões. Na na primeira metade deste ano, US$ 2,92 bilhões.

A redução de US$ 2,3 bilhões nos caixas das empresas — mais que o faturamento de seis meses de companhias como Embraer (US$ 1,95 bilhão), Rede D’Or (US$ 2,05 bilhões) e Sabesp (US$ 1,94 bilhão) — endossa a tese de que a euforia dos investidores e o deslumbramento dos empresários aportados esfriaram. E junho foi o fundo do poço. As startups captaram US$ 343 milhões no mês, queda de 83,9% na comparação com o mesmo período do ano passado.

TRAGÉDIA ANUNCIADA Se os números causam surpresa, não deveriam. Segundo o consultor de Moisés da Costa Maciel, especializado em Economia da Inovação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), as startups teriam de redimensionar suas operações mais cedo ou mais tarde. “O mercado estava sobrecarregado de ideias disruptivas e a voracidade dos investidores seguia muito alta”, afirmou Maciel. “Muitos investidores miraram o ralo e acertaram.”

O aparente fim do Eldorado das startups pode não significar o início de um ciclo recessivo no setor, mas apenas a constatação de que as jovens empresas de tecnologia valem hoje o que elas realmente são. Tome-se o exemplo do Nubank. Com US$ 41 bilhões em valor de mercado na abertura de capital, em dezembro, valia mais do que o Itaú. Hoje vale metade disso. Era difícil acreditar que os números hiperinflados se mantivessem sem uma geração proporcional de receita. “Só dinheiro não mantém uma startup aberta por mais de três anos”, disse Maciel, da UFRGS. “O difícil para um gestor de startup ou gestor de fundo é saber o exato momento em que uma startup deixa de ser criança e passa a ser adolescente. E tratar um adolescente como criança nós sabemos o que acontece.”

Essa autocrítica tem sido observada tanto entre as startups quanto no mercado de investimentos. Segundo Rafael Belmonte, investidor e fundador do GV Angels, grupo de investidores anjo, o Brasil vive um momento de cautela e correções na economia, por conta da grande euforia e apetite do setor nos últimos dois anos. “Existem empresas que estavam com projeções de crescimento muito mais elevadas que outras. Elas provavelmente irão demitir mais”, afirmou. Segundo ele, crescer a qualquer custo não é mais viável. “Elas deverão evoluir de maneira mais controlada, racional e sustentável, assim como as startups camelo, que diferente dos unicórnios, procuram ter uma jornada focada em sustentabilidade e sobrevivência do negócio.”

REAJUSTE O presidente da Associação Brasileira de Startups (Abstartups), Felipe Matos, avalia que a onda de enxugamentos nas empresas não pode ser vista como uma tendência geral do setor, já que os maiores cortes foram nas startups de grande porte e que receberam enormes somas de recursos. Os últimos anos marcaram uma euforia no mercado em um cenário que hoje não existe mais. Elas estão tendo que rever o cenário e se reajustar. Já nas startups médias e pequenas, os cortes são menos frequentes, segundo ele. “As que estavam queimando o caixa para crescer mais rápido são as mais afetadas”, disse.

As empresas com postura mais conservadora, com fundamentos de lucratividade mais bem aplicados, tendem a fazer menos ajustes. Segundo Matos, os cortes do setor de tecnologia estão em linha com o que ocorre na economia global, muito afetada pela elevação das taxas de juros, pandemia e a guerra na Ucrânia. “Temos visto que a elevação nas taxas de juros está mudando o comportamento dos investidores, que estão menos dispostos a correr risco em troca de rentabilidade. Com isso, há uma reprecificação dos investimentos nas empresas.”

Os aumentos das taxas de juros não só secaram os fluxos globais de capitais para as startups, como afetaram as empresas especializadas orientar sobre investimentos no Brasil. Com uma taxa de juros a 13,25% pairando sobre a cabeça dos investidores, é difícil segurar o dinheiro em renda variável e em ativos mais diversificados. Resultado: efeito manada de volta à renda fixa. Corretoras como Empiricus, Primo Rico (ligada à XP), Órama e a plataforma de investimento TC cortaram mais de 300 desde o começo do ano.

Para Julian Tonioli, especialista em M&A, governança, estratégia, gestão e capital da consultoria Auddas, os próximos meses mostrarão se as demissões são correções pontuais de rota e se tendência prenuncia um ciclo prolongado de dificuldades. “Desligamentos fazem parte do ciclo de vida de uma startup e uma empresa em geral. Faz parte do trabalho dos líderes identificarem a dose certa e preservarem o negócio acima de tudo”, disse Tonioli. Nesse processo, segundo ele, o grande desafio das startups que estão demitindo é identificar e preservar talentos, dentro de uma comunicação próxima e clara, conduzindo as demissões de forma estruturada, respeitosa e humanizada. As que ainda não se programaram para isso, serão obrigadas a aprender.