Para muitos britânicos, os soldados que intervieram na Irlanda do Norte há 50 anos são heróis anônimos que defenderam a ordem pública em uma região dividida pelas tensões identitárias. Para muitos irlandeses, porém, eles apenas exacerbaram o conflito.

Os soldados devem ser processados por seus supostos crimes? Esta é uma das perguntas que marcam o amargo debate sobre a presença militar britânica neste território do norte da ilha da Irlanda, que pertence ao Reino Unido.

“As repercussões afetam atualmente a política na Irlanda do Norte”, afirma Dominic Bryan, professor na Queen’s University, de Belfast.

A Associação de Veteranos da Irlanda do Norte, que organiza neste sábado (17) um ato em Lisburn para relembrar a intervenção, admite que seus membros estão “preocupados”.

Após uma perseverante campanha das famílias das vítimas pedindo justiça, a Procuradoria norte-irlandesa anunciou este ano que levará um veterano do Exército aos tribunais, em setembro. Conhecido como “Soldado F”, ele será processado pela matança do “Domingo sangrento” (“Bloody Sunday”).

Em 30 de janeiro de 1972, paraquedistas britânicos mataram 13 militantes católicos que participaram de uma manifestação pacífica na localidade norte-irlandesa de Londonderry. Uma 14ª vítima morreria poucos dias depois.

– “Verdade e justiça”-

É a primeira vez que estes episódios sangrentos têm consequências jurídicas.

O conflito civil na Irlanda do Norte pôs em lados opostos os republicanos nacionalistas, de confissão católica e partidários da reunificação da Irlanda, contra os unionistas, majoritariamente protestantes e partidários de continuar como parte do Reino Unido.

Para John Kelly, que perdeu o irmão no “Domingo sangrento”, este conflito ainda não pode ser enterrado na história.

“Não se julgou nenhum dos 18 soldados que participaram destes atos. Deveriam julgar os 18, já que mataram pessoas inocentes”, diz ele à AFP.

“Queremos verdade e justiça, isso é tudo”, completou.

Outras investigações sobre outros incidentes trágicos continuam gerando polêmica na Irlanda do Norte e no restante das ilhas britânicas.

Cerca de 10% das 3.500 vítimas do conflito na Irlanda do Norte morreram nas mãos de soldados e de policiais britânicos. Algumas delas eram civis desarmados.

O debate sobre os militares britânicos envolvidos no conflito norte-irlandês se intensificou com a proposta de alguns deputados britânicos que pediram sua anistia, seguindo o exemplo do acordo alcançado para liberar 500 membros do Exército Republicano Irlandês (IRA), depois dos acordos de paz.

Na campanha do Partido Conservador, o novo premiê britânico, Boris Johnson, prometeu que acabaria com as “injustas” investigações judiciais contra os soldados.

Em Londres e Belfast, organizações de veteranos convocaram atos em apoio ao “Soldado F”. Alegam serem vítima de investigações injustas.

A credibilidade dessas investigações também gera debate.

“O Exército conservou excelentes informes das operações, mas não aconteceu o mesmo com os grupos terroristas”, explicou Richard Dannatt, ex-chefe das tropas britânicas que intervieram na Irlanda do Norte, em artigo publicado no jornal “News Letter”, em 2018.

“Isso favorece que estas investigações sejam realizadas de forma muito desigual”, alertou.

Os defensores das investigações temem que o governo britânico imponha obstáculos ao trabalho da Justiça, omitindo provas, sob a justificativa de proteção da Segurança Nacional.