Ao ser eleito presidente em novembro de 2018, Jair Bolsonaro se colocou como arauto de um novo Brasil. Sua campanha havia sido inédita na política brasileira, ao definir o candidato como “conservador nos costumes, liberal na economia”. Sua vitória atendeu os anseios de um eleitorado cansado da corrupção generalizada dos governos anteriores e do crescente peso do Estado sobre a economia. Para cumprir um mandato que deveria ser ético e austero, Bolsonaro convocou dois grandes nomes. Um deles era o juiz Sergio Moro, considerado o herói da Lava Jato e visto como um paladino da luta anticorrupção em um País destroçado por desvios de recursos públicos. O outro era o economista Paulo Guedes, fiador de uma promessa liberal para a economia brasileira. Guedes teria todas as respostas, a ponto de ser apelidado de “posto Ipiranga” pelo então candidato.

As diferenças de hoje com os primeiros dias do mandato de Bolsonaro são enormes. Moro foi rapidamente desidratado pelo governo. Desmoralizado por não ter sido consultado sobre a troca da principal cabeça da Polícia Federal, ele abandonou o barco em abril de 2019. Restou Guedes como o último laço de Bolsonaro com suas promessas eleitoreiras. Porém, assim como Moro, ele vem sofrendo um inexorável processo de desidratação. Foi reduzido a um consultor. Suas ideias, quando não são abertamente desmentidas pelo presidente, ficam agendadas para o já sobrecarregado Dia de São Nunca. O momento mais agudo do desgaste de Guedes ficou evidente na segunda-feira (1). Em um podcast do canal Primo Rico, ele admitiu que atritos sobre o percurso da economia são naturais de qualquer governo, mas disse que “prefere sair se ‘tiver que empurrar Brasil pelo caminho errado’”.

Assim como não se pode ensinar truques novos a um cão velho, é impossível mudar a cabeça de alguém como Bolsonaro. O capitão reformado nunca foi liberal. Ao contrário, seu discurso em quase três décadas na Câmara dos Deputados sempre foi corporativista, populista e com um viés estatista. Na eleição de 2002, ele declarou seu apoio a Lula e chegou a sugerir o ex-deputado petista José Genoíno para o Ministério da Defesa. Na campanha de 2018 ele se apropriou de uma narrativa alheia. Agora, os problemas de seu governo o fazem retornar a suas ideias anteriores e a cortejar sua base eleitoral original.

Bolsonaro interveio diretamente nos preços do gás de cozinha e do óleo diesel. Elevou os impostos sobre os bancos e retirou isenções da indústria automobilística. Mais do que isso, ele trocou o presidente da Petrobras de forma atabalhoada, atropelando sem cerimônia a governança corporativa implantada na estatal durante a gestão de Michel Temer como defesa contra os desmandos do governo. A decisão derrubou os preços das ações, desbaratou o Conselho de Administração e levou até a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a instalar procedimentos administrativos para investigar o uso de informações privilegiadas em transações com ações da estatal. Enquanto isso, o “posto Ipiranga” mostrou estar sem combustível para defender os princípios liberais tão alardeados na campanha. Guedes se limitou a dizer que a decisão do presidente era ruim para a economia, mas que era compreensível por ter sido uma jogada política.

Foi mau negócio, e o ministro sabe disso. Economista do Ibmec Brasília, William Baghdassarian avalia que as políticas de desoneração provocam efeitos colaterais adversos e mais elevam do que controlam os preços finais. “O governo pode dar um alívio no imposto, mas não significa que o preço na bomba irá baixar. Isso vai beneficiar um grupo pequeno e não na proporção que o governo imagina”, disse. Para ele, seria mais sagaz por parte do governo oferecer um auxílio direto aos caminhoneiros, como um voucher emergencial para abastecer seus veículos, do que desonerar o combustível.

Doutor em economia e professor de Orçamento Público da Universidade Federal do Rio de Janeiro, César Longo concorda. Ele afirmou que a política de zerar impostos foi eleitoreira e visa encobrir um descontrole inflacionário já contratado. “Quando o presidente usa a televisão para dizer que vai zerar impostos, ele cria uma tensão que faz o dólar subir e atinge diretamente o custo de vida”, afirmou.

PREÇOS EM ALTA Evidenciando a escalada da inflação cartazes com o termo Bolsocaro estamparam as ruas de São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro neste mês. (Crédito:Daniel Cymbalista)

E não basta fazer “live’ ao lado de apoiadores e dizer que a agenda econômica de Guedes continua em pé, como fez o presidente no dia 25 de fevereiro. Bolsonaro jogou mais combustível na fogueira da discórdia ao culpar os governadores pelo desgaste econômico e atacou os meios de comunicação. Em sua visão, a imprensa entende que ele, Bolsonaro, e não o coronavírus, é “o vírus mortal para o Brasil”. Segundo Carlos Augusto Metri, ex-diretor da secretaria especial da Fazenda do governo Fernando Henrique Cardoso, no médio e no longo prazo o vírus mortal é a incerteza. “Com a chegada da vacina, as coisas vão se normalizar. Para a história, Bolsonaro também vai passar. O que fica será a herança econômica, e ninguém parece dar o devido valor a isso”, disse. Segundo ele, a intervenção de Bolsonaro nos preços foi desastrada e desastrosa. Levou o mercado a questionar a participação efetiva de Guedes em uma política econômica que outrora ele prometeu capitanear.

O golpe foi ainda mais sentido pelo fato de a gestão de Roberto Castello Branco à frente da Petrobras ter sido impecável. Próximo a Guedes, o ex-presidente da petroleira fez a lição de casa. Seu sucessor, Joaquim Silva e Luna, é general. Em suas primeiras declarações ele disse que a Petrobras deve “enxergar as questões sociais”. Mau sinal, tendo em vista o tenebroso histórico de uso da estatal para executar políticas econômicas cujos resultados causam dores nos bolsos de seus acionistas.

PALAVRAS AO VENTO Quem conhece os meandros de Brasília afirma que Guedes alertou insistentemente Bolsonaro para evitar intervenções, mas foi voto vencido. “O presidente estava irredutível”, disseram interlocutores do ministro, que falaram com a reportagem em condição de anonimato. O desagrado com as intervenções intempestivas do chefe já pode ser detectado no discurso do economista. “Para construir uma nação forte você leva décadas, e, para construir um desastre econômico são alguns meses, na pior das hipóteses, anos”, disse ele, fazendo menção aos passos errados que um governo liberal não pode dar. Para ganhar fôlego, Guedes chegou a falar de tributar bancos, distribuir dividendos da Petrobras para os mais vulneráveis e substituir impostos. No entanto, nada de concreto surgiu dessas propostas, dando a impressão de que ele está, cada vez mais, falando sozinho.

E se Guedes fica amarrado, a aproximação de Bolsonaro com seus antigos parceiros de trabalho no Congresso Nacional turva ainda mais o futuro da política econômica. Segundo o ministro, a grande dificuldade de pautar medidas de redução de estado e privatizações nas Casas Legislativas são as pessoas que as ocupam. “Tem muita gente pendurada lá. Os lobbys são muito fortes. São os chamados ‘piratas privados’’’. Em sete dias, a Medida Provisória que trata da privatização da Eletrobras recebeu 578 emendas, nenhuma delas visando austeridade.

O desgaste e a desidratação de Guedes são nítidos, algo que o próprio ministro vem alertando. No podcast do Primo Rico, Guedes afirmou que o Brasil poderia se tornar “uma Argentina em seis meses ou uma Venezuela em um ano e meio”, se os gastos públicos não fossem contidos. Ele se corrigiu pouco depois e disse que levaria três anos para nos transformarmos em uma Argentina e cinco anos para que ficássemos como a Venezuela. “Já para nos tornamos uma economia como os Estados Unidos ou as da Europa serão precisos dez, quinze anos”, disse.

O CUSTO DA SAÍDA Diante desse cenário, economistas já começam a colocar na ponta do lápis quanto custaria uma saída de Guedes. A edição mais recente do Relatório Focus, levantamento feito pelo Banco Central (BC) mostrou que a mediana das projeções para o IPCA no fim 2021 subiu para 3,87%, ante 3,82% na semana anterior. Foi a oitava alta semanal consecutiva. No caso do dólar, a taxa de câmbio projetada para dezembro subiu para R$ 5,10, ante R$ 5,05 há uma semana e R$ 5,01 há um mês. Isso deixa mais distante o sonho de um dólar abaixo de R$ 5.

Além das expectativas para os preços dos ativos, os números mostram a piora do cenário. A dívida pública passou de 64% do Produto Interno Bruto (PIB) para 64,55%, em uma curva ascendente que já dura três semanas. E há comentários no mercado de que o BC pode elevar a taxa Selic em até 0,5 ponto percentual na próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom).

Tudo isso deixa o mercado com duas certezas, ambas ruins. A primeira é que a economia vai mal com Guedes e ficaria bem pior sem ele. Na avaliação de um tesoureiro de um grande banco que, por razões óbvias, prefere não se identificar, o risco de o Posto Ipiranga da Esplanada dos Ministérios encerrar suas atividades ainda não está refletido nos preços dos ativos financeiros. Longe disso. Apenas 30% da volatilidade decorrente da saída de Guedes está precificada. E ainda assim, a substituição poderia provocar uma turbulência enorme. O dólar subiria até a casa de R$ 7 ante os R$ 5,59 da quinta-feira (4) e o Ibovespa, atualmente ao redor de 113 mil pontos desabaria para 80 mil.

Esses prognósticos confirmam que o custo de uma saída atabalhoada de Guedes seria alto. O solavanco poderia até ser menor se ele fosse substituído por alguém com ideias parecidas. Por exemplo, Roberto Campos Neto, presidente do BC. Sua gestão tem sido elogiada e a avaliação é que suas habilidades políticas são maiores que as de Guedes. Como disse um banqueiro, seria trocar “meia dúzia por seis e meio”. A grande incógnita, porém, permanece. Sendo Ipiranga ou não a bandeira do “posto” que vai comandar o Ministério da Economia, o combustível da política econômica será formulado pelo Presidente da República. E, como ocorre com os combustíveis, o potencial explosivo é enorme.