Amanchete poderia estar em qualquer noticiário das últimas semanas: “Governo se mostra inoperante frente à pandemia”. Só que ela é de 15 de outubro de 1918 e foi estampada na capa do periódico carioca Gazeta de Notícias, no auge do impacto da gripe espanhola no Brasil. A matéria criticava o então presidente Venceslau Brás e seu diretor de saúde pública Carlos Seidl. Era o final do mandato de Brás, que não esteve à frente do País no período pós-pandemia. Jair Bolsonaro, que está apenas em seu segundo ano de governo, pode não ter a dimensão exata dos danos da Covid-19 na saúde pública, mas sabe que enfrentará uma retração econômica brutal, que pode fazer com que o PIB recue em 5% ou mais. Para atenuar a gravidade da crise após o arrefecimento da doença, seu governo começa a montar planos para tentar deixar a atividade econômica aquecida. O objetivo evidente é que a doença não contamine também seus dois anos de gestão antes da eleição de 2022.

Na quarta-feira 22 o governo tentou apresentar o que pode ser classificado como uma versão brasileira do Plano Marshall, desenhado por um general americano para tirar a Europa e o mundo da depressão inevitável após a Segunda Guerra. Chamado Pró-Brasil, o plano nacional pode até ter sido inspirado no dos EUA, como afirma o ministro da Casa Civil general Walter Braga Netto. Comparando os dois, contudo, fica evidente que eles pouco se assemelham. O objetivo do Pró Brasil, segundo as palavras do padrinho da medida, é reativar obras públicas, incentivar a cadeia produtiva e usar recursos do Tesouro. “Assim podemos evitar a escalada do desemprego”, afirmou Braga Netto durante a coletiva de imprensa para apresentar o plano. A ideia lembra mais o New Deal, nome dado à série de programas criados também nos Estados Unidos pelo então presidente Franklin Delano Roosevelt para recuperar após a Grande Depressão de 1929. Enquanto o Plano Marshall injetou na economia o equivalente a US$ 100 bilhões de dólares dos dias atuais, o programa brasileiro ainda caminha no plano das ideias, com metas genéricas do tipo “reativar canteiros de obras públicas” sem detalhar quais regiões ou tipo de obra poderão ser priorizadas.

“Serão obras de saneamento, que beneficiam a população, ou obras rodoviárias, para ajudar transportadoras?”, questiona Alberto Caiero, professor de macroeconomia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O argumento de Braga Netto para não dar muitos detalhes foi o fato de se tratar, segundo ele, de um projeto mais amplo de País. “Não é um programa só de governo, é de Estado. A nossa previsão de trabalho deste programa está em um universo temporal de dez anos, até 2030. Estamos pensando a longo prazo”, afirmou. Além de Braga Netto, participaram da coletiva os ministros da Saúde, Nelson Teich; da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas; do Turismo, Marcelo Álvaro e da Secretaria de Governo, Luiz Ramos. Todos apresentaram as medidas mais recentes de seus ministérios no enfrentamento ao coronavírus. O governador do Distrito Federa, Ibaneis Rocha, também esteve presente.

A maior surpresa foi o anúncio não contar com nenhum representante do Ministério da Economia, o que denota a falta de coordenação do Executivo.

Entre os ministérios mais demandados no programa está o da Infraestrutura, onde a perspectiva é que o pacote consuma cerca de R$ 30 bilhões para retomar 70 obras que estão paralisadas ou sendo tocadas abaixo da sua capacidade total. Entre elas estão rodovias, ferrovias e terminais portuários. “Sabemos que o forte investimento em obras públicas é um traço de governos militares, como aconteceu nos anos 1970 e 1980”, afirma a historiadora Selina Dias, pós-doutorada em história da economia brasileira e docente convidada da Universidade de São Paulo (USP). Essa percepção tem fundamento. Segundo interlocutores do Palácio do Planalto, não só Braga Netto está apadrinhando o programa como seus pares no Exército têm ampla simpatia por um projeto que eleve de forma rápida o emprego e garanta a percepção de “volta à normalidade”.

“A nossa previsão de trabalho deste programa está em um universo temporal de dez anos, até 2030 ” General Walter Braga Netto, ministro da Casa Civil. (Crédito:Jorge William)

Um obstáculo pode ser o ministro da Economia, Paulo Guedes, que possui uma visão menos populista sobre medidas para fomentar empregos com dependência de aparatos públicos. Talvez por isso não tenha sido convidado para a coletiva que anunciou o Pró-Brasil. Mesmo assim, pessoas próximas a ele dizem que acabou concordando com o plano. Sua maior preocupação será com a conta para os cofres públicos. Apesar de as medidas serem importantes para a recuperação do emprego, não se pode perder de vista a escalada dos gastos. A estimativa do ministério da Economia é que a crise da Covid-19 já consumiu mais de R$ 800 bilhões, sendo R$ 400 bilhões de impacto fiscal direto, fator que prejudicará, e muito, a saúde financeira do governo. Nesse ritmo, o governo poderá chegar ao fim de 2021 com uma dívida pública que ultrapassa o PIB.

A criação de empregos em grande escala, contudo, pode aliviar essa conta, uma vez que o aumento da renda por meio da massa salarial faz girar a roda da economia como um todo e eleva a arrecadação. O ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, estima que as obras possam gerar entre 500 mil e 1 milhão de novos postos de trabalho nos próximos três anos, e a ideia é começar por canteiros que já estejam com um grau avançado tanto na obtenção de licenças quanto na liberação do Tribunal de Contas da União (TCU). A escolha dessas obras ficará a cargo de dois ministérios: Desenvolvimento Regional e Minas e Energia. Eles mapearão, dentro dos estados, obras que possam ser reativadas de modo célere, seja de infraestrutura ou de habitação, como o Minha Casa, Minha Vida.

CURTO PRAZO Governador de São Paulo, João Doria, anunciou retomada gradual a partir de 11 de maio (Crédito:Gabriel Cabral)

A RESPOSTA PAULISTA Estado mais afetado pela Covid-19, São Paulo começa a enxergar uma luz no fim do túnel para a economia. Pelo menos é o que acredita o governador João Doria (PSDB). De acordo com ele, os paulistas poderão começar a retomar (ainda que lentamente) uma rotina mais flexível a partir de 11 de maio. “Isso só será possível porque conseguimos achatar a curva de infecção e manter a ocupação dos leitos de tratamento sob controle”, disse. Sobre a reabertura gradual da economia em algumas cidades do Estado, o governador afirmou que levará em conta situações locais, regionais e setores que possam retomar gradativmente economia com as devidas medidas de proteção.

O chefe do executivo paulista afirmou ainda que houve uma reclusão de 57% dos habitantes do estado durante o feriado de Tiradentes, em 21 de abril, o que evidenciou o comprometimento da população com as diretrizes de saúde. O tucano, que também está no segundo ano de mandato e olhando para 2022, tem insistido na tecla de que baseia suas escolhas em evidências científicas e na experiência de países que começaram a enfrentar surtos do novo coronavírus antes do Brasil. Desde o início da pandemia, Doria tem sido o maior opositor das falas e comportamentos de Bolsonaro, tendo afirmado inclusive seu arrependimento no apoio dado ao então candidato à Presidência. Sobre o fim do isolamento, o governador foi ponderado: “Não estamos dizendo que vamos deixar de ter quarentena depois de 10 de maio. Teremos o Plano São Paulo, que vai estabelecer áreas, setores, que poderão ser distendidos, e outros não”. Segundo o governador, a implementação acontecerá de forma “faseada, regionalizada e setorial”, o que só é permitido por haver dados e preparo do sistema de saúde. Doria e Bolsonaro estão de olho no futuro, agora em lados opostos.