Numa de suas muitas críticas à Constituição de 1988, o ilustre economista Roberto Campos (1917-2001), ex-ministro do Planejamento, sugeriu que o texto prometia uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos. “Na Constituição de 1988, a lógica econômica entrou de férias”, afirmava o intelectual. As “férias” vão completar 30 anos em 5 de outubro, consolidando o documento como a Carta Magna mais longeva em períodos democráticos. Os questionamentos de Campos soam ainda mais atuais. O País vive uma profunda crise fiscal e, a menos de uma semana das eleições, é confrontado com a necessidade de reformas que revisem alguns dos preceitos pensados pelos 559 constituintes na elaboração do texto. A percepção é de que o Estado não cabe mais no PIB.

Ninguém duvida da importância do documento para garantir a solidez institucional no período pós-ditadura. Diversas crises foram superadas nas três décadas, incluindo o afastamento de dois presidentes. Uma questão segue em aberto: como resolver o financiamento do Estado, para sustentar as políticas públicas elaboradas para atender, em boa parte, os direitos constitucionais? O que os economistas tentam decifrar é de que forma a Constituição gerou pressões que dificultaram a viabilidade da administração pública, quais seus efeitos sobre o dinamismo da economia e as alternativas para reverter o impasse. “De alguma forma, a Constituição deixou sem definição o financiamento do Estado previsto por ela mesma”, afirma Paulo Levy, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “Há um relativo consenso de que o texto implicava um aumento grande dos gastos sem que houvesse uma elevação correspondente na arrecadação.”

Todos contemplados: pressão de diversos setores da sociedade influenciou as decisões dos 559 parlamentares envolvidos na confecção do texto de 1988 e resultou numa das mais longas Constituições do mundo, atrás apenas dos documentos da Índia e da Nigéria. Revisar as cláusulas que não têm densidade constitucional demanda um quórum mais qualificado no Congresso e esbarra na resistência de corporações em rever privilégios

Um levantamento feito pelos economistas Manoel Pires e Braulio Borges, do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre), mostrou que a despesa da União subiu 43,6% de 1988 até 2016, alcançado 18,1% do PIB. Nesse período, o avanço dos gastos acabou sendo encoberto por três fenômenos distintos: inicialmente pela alta da inflação, depois com um aumento de carga tributária e mais recentemente com a elevação da dívida pública. Para a maioria dos economistas, a situação chegou ao limite. Sem reformas que diminuam a trajetória da despesa, o País ficará com a solidez em xeque e seguirá sendo visto com desconfiança por investidores. O risco é de um aumento na inflação e um consequente freio na capacidade de crescimento do PIB. Para Guilherme Afif Domingos, que foi deputado constituinte e hoje preside o Sebrae, as distorções já eram claras na época da elaboração e a correção chega com anos de atraso. “A nossa Constituição foi uma grande demanda corporativa, havia fortíssima pressão de lobbies”, diz Afif. “A verdade apareceu no caixa e hoje se tem um Estado que não cabe no Orçamento.”

Afif integra um grupo de autoridades e acadêmicos que defendem uma “lipoaspiração” do texto. A Constituição brasileira figura como uma das mais extensas nas comparações internacionais. Com 64.488 palavras, só perde, em tamanho, para a da Nigéria e a da Índia, numa lista de mais de 100 países elaborada pelo Projeto Comparativo de Constituições, da Universidade do Texas. O problema é que a inclusão de temas que não tem profundidade constitucional dificultou as mudanças e, do ponto de vista da gestão do gasto, engessou a administração. A diferença é o quórum de aprovação no Congresso. Enquanto uma lei ordinária requer apenas maioria simples (com metade, mais um dos presentes), uma mudança constitucional demanda três quintos dos parlamentares e duas sessões de votação.

A obtenção de maioria para reverter questões constitucionais se mostra um desafio sobretudo quando trata de temas sensíveis e que mexem com privilégios. Isso ficou claro na tentativa recente do governo federal de passar uma reforma da Previdência que pudesse conter o crescente déficit nos sistemas de aposentadorias e adequasse as regras a uma nova realidade. Foram mais de dois anos de esforços, sem sucesso. A tarefa deve ficar para o próximo presidente eleito, uma vez que a alteração é considerada a mãe das reformas para resolver o impasse fiscal que limita o crescimento hoje. Não é a toa que o esforço das contas públicas comece pela Previdência. Os gastos nessa área foram os que mais cresceram no período. Em percentual do PIB, chegaram a 8,1% em 2016, quase quatro vezes acima do patamar de 1988 (2,5%). A rubrica já chega a mais de 60% do gasto federal.

Fator de pressão: inclusão de norma que prevê estabilidade de emprego aos servidores
públicos aumentou o poder de mobilização da categoria por reajustes e pela criação de mais benefícios

Os benefícios previdenciários cresceram puxados principalmente pela política de reajustes reais do salário mínimo no período pós-estabilização. Nos cálculos dos pesquisadores do Ibre, essa política foi responsável por pouco mais da metade do avanço do gasto no período 1988-2016. Como a Constituição prevê apenas a atualização do mínimo pela inflação, os economistas concluem que o aumento partiu de decisões políticas de garantir ganho real aos salários, sem relação direta com o texto de 1988. Há, porém, quem discorde dessa tese e sustente que a Constituição acabou gerando a noção de que o salário mínimo deveria ser a referência para os outros benefícios, o que gerou o efeito em cascata dos reajustes. O levantamento dos economistas também identifica o impacto de outros programas que não guardam relação com a Carta Magna, como o programa Minha Casa, Minha Vida. Desconsiderando esses itens, o nível de despesa em 2016 ficaria em 13% do PIB, próximo dos 12,6% de 1988, o que levaria a supor, na visão deles, um baixo impacto da Constituição sobre a despesa.

Na questão previdenciária, é possível identificar algumas frentes de pressão para as contas públicas no texto de 1988. Funcionários da administração indireta que estavam sob o regime CLT foram classificados como estatutários, com direito a aposentadoria mais generosa e gerou-se a obrigação do Estado em garantir os benefícios mesmo para quem não tiver contribuição equivalente, no sistema rural, por exemplo. Há distorções em outras áreas também. A garantia de estabilidade aos servidores públicos deu respaldo à categoria para negociar avanços das remunerações na máquina estatal, o que contribuiu para a elevação da despesa com pessoal. Outros casos são ainda mais específicos, como os benefícios fiscais da Zona Franca de Manaus. Esses temas estarão em xeque na medida em que o País completará quase uma década com as contas públicas no vermelho.

Ao longo das três décadas, foram aprovadas 105 emendas na Constituição. No Congresso, há ainda mais de 1.000 propostas de alterações. Nas campanhas presidenciais, partidos como o PT sugerem inclusive uma revisão mais radical, com a convocação de uma constituinte. “Não é o caso”, afirma o jurista Ives Gandra Martins, fundador da escola de direito CEU Law School (leia mais ao lado). “O caso é tentar manter a espinha dorsal positiva e conseguir fazer as reformas.” Para José Roberto Afonso, pesquisador do FGV Ibre e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), é necessário avançar ainda nas regulamentações pendentes que aprimorem a governança orçamentária e fiscal, com normas como a que limita a dívida pública federal. “A Constituição pressionou gastos com seguridade social, mas, ao mesmo tempo, também permitiu criar a Lei de Responsabilidade Fiscal”, afirma. “É o uso que governos e parlamentares fazem das regras que dita o resultado.” Trata-se de um diagnóstico que amplia a importância das eleições deste ano.


“A Constituição criou uma federação maior que o PIB”

O jurista Ives Gandra Martins, fundador da escola de direito CEU Law School, conversou com a DINHEIRO:

Por Leonardo Motta

Qual é a sua avaliação sobre o texto de 1988?
Tem aspectos positivos e negativos. Do ponto de vista de dar estabilidade às instituições e manter direitos e garantias e individuais, é muito boa. Nunca tivemos tanta estabilidade como agora. Do ponto de vista de adiposidade e disposições que não têm densidade constitucional é uma Constituição que poderia ser escoimada em grande parte. A verdade é que, mesmo com todas as crises que tivemos em 30 anos, continuamos com as instituições funcionando, o que demonstra uma função positiva. A espinha dorsal é muito boa, o que não é boa é essa adiposidade que pode ser escoimada com reformas, reforma tributária, reforma política, reforma administrativa, do judiciário e principalmente a reforma previdenciária.

O que o senhor quer dizer com adiposidades?
O texto nasceu com 245 artigos. Adiposidade é essa gordura que a Constituição ganhou com disposições sem densidade constitucional. É evidente que isso também provocou as emendas do processo ordinário. Estamos vivendo hoje um momento em que o novo presidente, queira ou não queira, vai ter de enfrentar essas cinco reformas. Se não enfrentar, a economia vai ditar as regras da Constituição.

As garantias constitucionais contribuíram para o problema fiscal atual?
A Constituição criou uma federação maior que o PIB e, ao dar garantia a todos os servidores e permitir que não concursado participasse disso, fez com que o peso da administração, da burocracia, que foi criando obrigações, fosse muito grande.

Existem candidatos que defendem a convocação de uma nova constituinte…
Não é o caso. O caso é tentar manter a espinha dorsal positiva e conseguir fazer as reformas.