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O senhor de cabelos brancos chega à portaria da fazenda, ajoelha-se e beija o solo com solenidade. A seguir, vira-se para os jovens que o acompanham, em geral jovens parentes, e explica: ?Foi com isso que criei meu filho e ele criou meus netos.? Diante do grupo, estende-se um campo inteiramente coberto de laranjais, cujo fim os olhos mal podem alcançar. Alguns participantes se arrepiaram diante daquelas palavras. Talvez o misticismo que envolve a cena não permita, mas aquele senhor poderia acrescentar uma frase à oração: ?… e foi com isso que me tornei bilionário?.

Aos 74 anos, alto, bem conservado para a idade, o empresário José Cutrale Júnior é um dos homens mais ricos do mundo. Segundo um levantamento da revista americana Forbes, ele é o 433º nome de uma lista composta por gente como Bill Gates, Warren Buffett, e a rainha Elizabeth II. Seu patrimônio pessoal atinge US$ 1 bilhão ? uma fortuna cujo princípio, meio e fim estão na laranja. Cutrale tem hoje 20% do mercado mundial de suco concentrado. De todas as laranjas colhidas no Brasil, 10% vêm de seus pomares, espalhados por 26 fazendas, numa área total de 45.000 hectares. Sua produção anual é de 50 milhões de caixas, mas sua indústria tem capacidade de processamento de 70 milhões de caixas. O faturamento de seu grupo supera US$ 500 milhões.

Se depender de seus planos, esses números crescerão ainda mais e ele consolidará a posição de ?rei da laranja?. Cutrale acaba de dar mais alguns passos na conquista do maior mercado de suco de laranja do mundo, os Estados Unidos. O objetivo é brigar pela liderança mundial do setor. Primeiro foi a compra de duas fábricas que pertenciam à Minute Maid, a divisão de sucos da Coca-Cola. Ali, investiu mais de US$ 50 milhões em modernização e ampliação. Em outra jogada arrojada, adquiriu 15 mil hectares de terras na Flórida, nos Estados Unidos, segundo Hugh Thompson, gerente geral da Cutrale Juices, o braço americano do grupo. É um lance de longo prazo. Os laranjais darão os primeiros frutos dentro de 7 anos. Na avaliação de Cutrale, a produção local é a única forma de vencer as barreiras impostas pelos americanos ao suco exportado pelo Brasil.

É assim mesmo. Cutrale sempre esteve ?com um olho além da próxima curva?, diz um de seus amigos. Isso explica, em parte, o sucesso de seus negócios. Além disso, privilegia investimentos constantes em tecnologia (a cada ano, 4% a 5% vão para pesquisa e desenvolvimento) e uma dedicação quase exclusiva à laranja. Isso significa reinvestir quase tudo o que ganha no próprio negócio.

Na empresa, mantém uma gestão familiar. Os salários dos executivos não são altos. Mas quando um dos diretores realiza um bom trabalho no ano Cutrale pode premiá-lo com um sítio. Certa vez, o comandante holandês de um de seus três navios atravessou uma tempestade em alto mar, sem danos para a embarcação. Ganhou uma casa na Holanda.

O estilo de gestão é resultado de pura intuição. Cutrale tem apenas o primeiro grau completo. Abandonou os estudos aos 14 anos para ajudar o pai, um imigrante italiano que trouxe para o Brasil o negócio de tradição da família, o comércio de laranjas. Anos depois, Cutrale percebeu que, com pomares próprios, ganharia poder de barganha para negociar a compra das frutas. Em 1952, adquiriu a primeira fazenda. Em 1967, arrematou a Suconasa, pioneira na fabricação de suco de laranja. Estava falida na época. Houve quem o chamasse de louco. ?Pois foi um lance de gênio?, diz um concorrente. Meses depois, uma geada na Flórida fez os preços internacionais dispararem. Com o dinheiro arrecado, Cutrale pagou todo o investimento. ?Ninguém no Brasil conhece o setor tão bem quanto ele?, resume um antigo colaborador. ?Seu berço foi uma caixa de laranjas e em suas veias corre suco de laranja.?

No Mercado Municipal de São Paulo, onde o pai tinha uma banca, Cutrale moldou uma personalidade complexa, que não se encaixa em rótulos. Por exemplo: os velhos comerciantes do local ainda falam de seu proverbial pão-durismo. Não raro, contam eles, Cutrale recolhia pessoalmente as caixas de madeira para reutilizá-las no transporte das frutas. Se encontrava alguma abandonada por concorrentes, apanhava, raspava a antiga marca e gravava o nome Cutrale. Seus hábitos pessoais também são franciscanos. Terno e gravata só nos eventos em que sejam imprescindíveis. Roupas de grife? Nunca. Certa vez, em uma de suas viagens a Paris, encontrou um grupo de amigos. Combinaram gastar alguns francos em um cassino antes de jantar. Ao chegar frente às máquinas, recuou. ?Não tenho condições de arriscar meu dinheiro?, disse ele, um dos homens mais ricos do mundo. Em outra oportunidade, encontrou uma laranja no chão de um pomar. Apanhou-a, chamou o funcionário mais próximo e avisou: ?Isto é dinheiro jogado fora. Se cada um dos funcionários deixar de recolher uma fruta…?

É pão duro, não é? Calma. Anos atrás, quando a Cargill apresentou o primeiro navio para transporte de suco de laranja a granel, Cutrale ficou fascinado. Em seis meses, tinha um outro, projetado por sua equipe. Gastou milhões de dólares. Mas não se importou. É verdade que havia um poderoso argumento de negócios. A posse de navios e terminais portuários é fundamental para a formação de estoques de suco concentrado e o controle sobre preços internacionais.

 

Pode-se também definir Cutrale como um homem avesso a qualquer tipo de exposição. Restaurantes de luxo, festas? Nem pensar. Fotos suas são artigos raros em jornais e revistas. Fotógrafos contratados para cobrir eventos de sua empresa são orientados para não registrar cenas com sua presença. Em geral, ele leva sua própria câmara e pede para que um de seus diretores faça as fotos. A discrição some na hora de uma negociação. O homem de poucas palavras transfigura-se. É como se o sangue italiano se manifestasse em gestos grandiosos, voz alta e poses teatrais. Certa vez, durante uma dura negociação para a compra de laranjas, ele desabotoou a camisa e começou a tirá-la. ?Não tenho mais nada para ceder. Só me resta entregar a roupa do corpo?, disse ele. Na banca do mercado municipal, Cutrale mantinha a caixa registradora com poucas notas de dinheiro. Na hora de negociar, abria a gaveta e dizia: ?Veja minha situação. Se quiser, leve o que está aí dentro, pois já não faz diferença.?

Ao longo da vida de Cutrale, trabalho e família sempre se confundiram. A esposa, Amélia, era sua companheira na banca do mercado municipal. Seu filho único, José Luiz, foi criado no mesmo ambiente. Ainda adolescente, era enviado para a beira da estrada para fiscalizar horário, velocidade e as condições dos caminhões da empresa. Hoje, aos 50 anos, é responsável pelos negócios, embora o pai dê a palavra final sobre os assuntos mais importantes. Os dois netos também se envolveram com os negócios. José Luiz Júnior trabalha ao lado do pai. José Henrique vive nos Estados Unidos e é um dos responsáveis pela Cutrale Juices. A irmã dos dois, Graziela, está casada e vive na região de Ribeirão Preto.

O dinheiro trouxe muito poder para Cutrale e sua família. Na região de Araraquara, sede do grupo, o nome é temido por concorrentes, vizinhos e produtores de laranja. Atualmente, Cutrale vive aprisionado por seu próprio medo, que já adquiriu traços de paranóia. Anos atrás, construiu um condomínio fechado, ao lado da sede de sua corporação. Batizado oficialmente de Residencial Araraquara, o local é chamado pela população como ?Fortaleza?. Ali moram, além dele, os principais executivos do grupo. Trata-se de uma área enorme protegida por um alambrado, junto do qual há uma fileira de árvores altas. Depois um cinturão de laranjais, é claro. No centro do sítio, há as casas e a área de lazer, cercadas por muros. Para não dizer que não falamos de flores, a murada foi construída em forma de coração. Cerca de 50 homens se revezam em três turnos na vigilância do condomínio. Carros com guardas rodam permanentemente por uma pista que circunda toda a área.

Cutrale utiliza apenas carros alugados, substituídos periodicamente. Prefere Gol ou Santana. Ele mesmo os dirige, mas seguido por um veículo com seguranças. Até mesmo aviões de carreira são evitados. Para seus deslocamentos, utiliza duas aeronaves. Uma delas, um jatinho de 13 lugares, serve inclusive para vôos internacionais. Para amigos, Cutrale confidencia que toda essa proteção é ?pesada, mas resultado da determinação com que me atirei para construir esse grupo?. Uma determinação que um de seus concorrentes, Edmond Van Parys, resumiu em um discurso: ? … Depois, o meu caro amigo José Cutrale Júnior ganhou de nós, como ganhou de todo mundo e ganhou em tudo, absolutamente em tudo: mercado interno, exportação, indústria e plantações?. E também uma das maiores fortunas do planeta.