Não é possível dizer que o ministro da Economia, Paulo Guedes, não sabia dos interesses do Congresso quando enviou a rasa proposta do Programa de Reescalonamento do Pagamento de Débitos no Âmbito do Simples Nacional (Relp), o popular Refis, para ser votada no Legislativo. O caminho de um texto que sai da mesa do ministro e vai para o gabinete dos presidentes das duas Casas já foi feito pelo menos sete vezes neste governo, e a resposta (quando não era a gaveta) foi um gasto maior que o projetado pela equipe econômica. E desta vez não foi diferente. A aprovação no Senado de um Refis mais amplo, mais irrestrito e mais benevolente era tudo que os parlamentares precisavam para agradar suas bases eleitorais. Para frustração do ministro, o resultado foi a possibilidade de parcelamento das dívidas em até 144 vezes, descontos que podem chegar a 90%, a possibilidade de incluir dívidas anteriores à pandemia e renúncia fiscal que, em uma conta superficial, pode encostar nos R$ 100 bilhões.

Para os empresários enforcados na pandemia, ou até mesmo os que já não vinham bem das pernas, a notícia foi bem recebida. Mas essa euforia pode acabar em um curto espaço de tempo se esse paternalismo impedir que o governo federal tire a economia da crise. E quem prova isso é a história. Em 21 anos, o Brasil já abriu 20 programas de Refis — todos eles voltados para grandes empresas. O resultado mais emblemático foi o de 2016, quando o País tentava se recuperar da crise iniciada em 2014. Em 12 meses o governo abriu três vezes o Refis, e renunciou a cerca de R$ 38 bilhões, o que em valores correntes daria R$ 47,6 bilhões. Na teoria, essa renúncia seria revertida em mais contratação de funcionários, mais pagamento de impostos e, consequentemente, reaquecimento da economia. Mas a prática passou longe disso.

50% das empresas que usaram o refis em 2016 logo voltaram à inadimplência

JÁ DEU ERRADO Um relatório elaborado em 2017 pelo Ministério da Fazenda, em parceria com a Receita Federal, deixou claro que o tiro saiu pela culatra. “A instituição de parcelamentos especiais não tem atingido os objetivos deles esperados: incrementar a arrecadação (diminuindo o passivo tributário) e promover a regularidade fiscal dos devedores, devendo qualquer medida proposta nesse sentido ser rejeitada”, afirmava a nota técnica dos órgãos. Pior ainda. Segundo o Fisco, 50% das empresas que aderem ao programa tornam-se logo inadimplentes pensando nos benefícios a vir. “O programa fez com que os contribuintes incorporassem uma cultura de não pagamento de dívidas na expectativa de instituição iminente de novo programa de parcelamento com condições especiais para pagamento.”

Étore Sanchez, economista-chefe da Ativa Investimentos, também vê a importância do programa no auxílio de empresas com fortes problemas financeiros, mas ressalta que “apesar de elevar a arrecadação, todo Refis — ainda mais de forma sistemática — gera incentivos à inadimplência”, disse. Pelo texto aprovado no Senado, as empresas que aderirem terão prazo de 12 anos para quitar os débitos, redução de juros proprorcional às perdas na pandemia e entrada em Recuperação Judicial.

90% é o teto do desconto para as PMES que aderirem ao programa do governo

Quando esse benefício é estendido para empresas de menor porte, e com dívidas que antecedem a pandemia, o valor da renúncia do governo é de difícil mensuração. Alguns economistas, como Sérgio Algôda Filho, ex-secretário da Fazenda do governo Michel Temer, fala em uma cifra próxima a R$ 90 bilhões. “Isso se houver uma adesão moderada. Com um incentivo maior, o valor passa facilmente de R$ 100 bilhões em um ano”, disse. Pela recepção das entidades setoriais, a adesão deve serº alta. A Confederação Nacional da Indústria e a Confederação Nacional dos Serviços soltaram notas comemorando a aprovação do Refis. Em sua sala, Guedes ensaia o texto que usará para tentar convencer Bolsonaro a vetar o Refis da Covid para empresas que vinham mal das pernas antes da pandemia. Nesse caso, o ministro também pode ter uma ideia do que receberá em troca do presidente.

“NÓS VAMOS PERDER DINHEIRO SALVANDO AS PEQUENININHAS”

Na fatídica reunião de 24 de abril de 2020, Paulo Guedes usou essa frase para mostrar seu apreço pelas empresas de menor porte. Ainda que elas gerem mais de 62% dos empregos no Brasil, representem 50% do comércio, 37% dos serviços 22% da indústria, um ministro da Economia liberal e forjado na escola dos Chicago Boys não poderia jogar a boia para salvar todas as pequenas empresas em apuros (já que, em breve, outra nasceria e tomaria o lugar da que quebrou). É um pensamento frio, mas liberal em sua essência. O governo não intervém, o mercado se autorregula e quem viver verá o resultado.

Mas a postura liberal de Guedes mudou drasticamente um ano depois — justamente quando um certo ex-presidente voltou ao páreo da corrida eleitoral. Por acaso, ou não, foi em abril de 2021 que Bolsonaro começou a “dilmar”. O verbo, inclusive, foi usado por um técnico do ministério da Economia, ao comentar os recentes ímpetos populistas do presidente.

O caminho da desoneração e das bondades em excesso para empresas, além de um Estado paternalista demais para tentar reativar a economia a fórceps em ano eleitoral, já foi trilhado e os resultados estão postos até agora. Pelo menos, Dilma Rousseff era mais educada que Bolsonaro. (Paula Cristina)