Nunca se havia visto nada semelhante e é improvável que se volte a ver. Quando, na segunda-feira passada, a televisão argentina levou ao ar imagens do presidente uruguaio Jorge Batlle gritando que ?os argentinos são um bando de ladrões, do primeiro ao último?, o mundo veio abaixo em Buenos Aires e Montevidéu. Como pôde o veterano líder colorado, presidente de um país discreto como o Uruguai, dizer tamanha grosseria sobre o vizinho com quem mantém as mais profundas, intensas e antigas relações bilaterais? ?Me tiraram do sério?, desculpou-se Batlle, 24 horas depois, durante uma entrevista lacrimosa concedida em Olivos, a residência oficial do presidente argentino Eduardo Duhalde. ?Eu estou sob estresse há quatro meses.? Batlle fora obrigado a cruzar o Rio da Prata na terça-feira 4 para aplacar pessoalmente a ira do governo argentino ? além de conter a incredulidade de sua própria gente, indignada com a incontinência verbal do presidente.

Batlle havia perdido o controle durante uma conversa com repórteres argentinos da agência Bloomberg, que queriam comparar a situação do Uruguai à da Argentina. Alterado e achando que a câmara estava desligada, Batlle deu socos na mesa e permitiu-se um ataque descontrolado à corrupção no país vizinho, ao final do qual desqualificou o próprio presidente peronista. ?Duhalde não tem força política, não tem respaldo, não sabe para onde vai?, esbravejou. Na terça-feira, depois de um constrangido encontro de meia hora, o presidente argentino aceitou as desculpas do colega falastrão: elogiou cinicamente a ?fidalguia? do uruguaio e deu por encerrado o episódio, dizendo que ele não será lembrado no futuro nem como anedota. Será.

Embora não seja estranho à sua biografia, caracterizada por outros episódios do que ele mesmo chama de ?combustão espontânea?, o destempero de Batlle pode ser parcialmente debitado à situação do país. Pequeno, comprimido entre Brasil e Argentina, o Uruguai de apenas três milhões de habitantes e PIB de US$ 17 bilhões sofre brutalmente com a derrocada da economia vizinha. Os turistas argentinos sumiram, os depósitos argentinos nos bancos de Montevidéu viraram vento e as vendas uruguaias do outro lado da fronteira caíram 74%. É uma crise tão importada quanto um tango de Piazzola, contra a qual Batlle e seus ministros são praticamente impotentes. Estão cortando gastos, aumentando impostos e acabam de fechar um pacote de ajuda com o Fundo Monetário Internacional, mas essas são medidas paliativas. Se a economia não emergir de quatro anos de recessão e voltar a crescer, puxada pelos mercados vizinhos, é bem provável que o Uruguai seja arrastado à moratória ainda no mandato de Batlle. Seria uma castigo terrível para o país, que tem uma economia pequena mas organizada, e uma ironia enorme contra seu presidente ? um conservador apaixonado que entraria para a história fazendo aquilo que os comunistas sempre defenderam, o calote.

Não que Batlle, de 75 anos, pareça estar se importando com o julgamento da história. Descendente de uma estirpe de políticos ? seu pai e um tio-avô foram presidentes do Uruguai ?, ele chegou ao poder depois de três tentativas frustradas e parece estar naquele momento da existência em que as pessoas já não fazem concessões de temperamento. ?Não sou de esquerda e nem de direita, sou eu mesmo?, gosta de dizer. Logo depois da sua posse, em 2000, Batlle defendeu a recriação do vice-reinado do Rio da Prata (que no século 18 reunia os territórios da Argentina, Uruguai, Bolívia, Paraguai e parte do Chile) para ?contrabalançar o poder do Brasil?. Dias depois já estava em Brasília explicando o que dissera. Na semana passada, porém, o caso era mais grave. Todos no Uruguai se lembram que há pouco mais de um mês, em 26 de abril, Batlle rompeu relações diplomáticas com Cuba porque Fidel o chamara de ?anacrônico e abjeto lacaio americano?. O presidente considerou que o insulto à sua pessoa ferira todos os uruguaios e que era preciso reagir. Se Duhalde usasse a mesma lógica, o Uruguai já não teria embaixador no país que abriga 500 mil de seus cidadãos e absorve 60% das suas exportações. Seria um desastre que as lágrimas, falsas ou verdadeiras, não seriam capazes de corrigir.