Moedas cunhadas em pedras e metais já existiam mil anos antes de Cristo, mas o dinheiro como o conhecemos está por aí desde o início do século 8. Os imperadores chineses da dinastia Tang pagavam suas despesas com retângulos de papel-arroz impressos e assinados, que poderiam ser convertidos em ouro na cidade de Chang’an, capital do Império, no centro da China. Mais de 13 séculos depois, isso não mudou muito. Apesar de boa parte das transações financeiras terem se tornado eletrônicas, ainda se usam retângulos de papel impressos e assinados para fazer negócios. E pequenos discos de metal continuam servindo para compras de baixíssima monta ou, no mínimo, para perfazer o troco. Isso foi até agora. Uma revolução tecnológica equivalente à introduzida pelos chineses está prestes a tornar-se realidade. E mudar tudo o que o dinheiro representa.

Há pouco mais de dez anos, a moeda virtual Bitcoin, criada pelo australiano Craig Wright sob o pseudônimo Satoshi Nakamoto, capturou a imaginação de todos os que tinham alguma relação com tecnologia. Uma década depois, novas criptomoedas, baseadas no mesmo modelo de blockchain da pioneira Bitcoin, mas adaptadas a novos modelos de negócio, introduzem um novo valor ao dinheiro: a inteligência. Com isso, a maneira como nos relacionamos economicamente jamais será a mesma.

O melhor sinal do início dessa revolução veio de Mark Zuckerberg. O Facebook confirmou, na primeira semana de junho, que irá divulgar os planos para sua própria moeda virtual. Denominada Libra, a criptomoeda da rede social deverá começar a circular apenas em 2020. Pouco se sabe sobre o assunto — o “white paper”, ou documento que revela os parâmetros do lançamento, só vai circular no dia 18 de junho. Até lá, é tudo especulação. O que está confirmado é que a Libra estará, de alguma forma, ligada às taxas de câmbio de moedas de 12 países e que deverá ser usada entre usuários da rede social para transacionar produtos e serviços. Será, como toda criptomoeda, baseada na tecnologia do blockchain. Mesmo sendo complexa, ela é relativamente fácil de explicar. Um blockchain é uma base de dados.

O que a torna tão útil é ser universal. Por estar localizada em milhares de computadores e servidores independentes na internet, ela é acessível a todos. Isso lhe permite servir de referência para transações. Por exemplo, é possível registrar que 0,01 Bitcoin foi negociado por R$ 315 às 20 horas, 36 minutos e 42 segundos do dia 12 de junho. No futuro, qualquer usuário do blockchain poderá acessar essa informação e confirmar esse negócio. Tanta visibilidade permite rastrear dados e possibilita fazer transações financeiras de maneira tão segura quanto as transferências realizadas pelas empresas internacionais de remessas. Com algumas diferenças importantes: de maneira instantânea, sem precisar do sistema financeiro e por uma fração ínfima do preço cobrado hoje.

Pioneiro: Craig Wright, que lançou o bitcoin disfarçado de Satoshi Nakamoto: sua moeda teve valorização de quase 8.000% (Crédito:Divulgação)

É possível avaliar o impacto da decisão do Facebook de entrar na mais recente revolução monetária comparando dois números. Em seu auge, dezembro de 2017, o Bitcoin chegou a ter 100 milhões de investidores, segundo estimativa do gestor de recursos americano Spencer Bogart, sócio da Blockchain Capital. Em fevereiro deste ano, quando completou seu décimo-quinto aniversário, a rede social de Zuckerberg anunciou ter 2,3 bilhões de usuários. E muitos deles são usuários em potencial de um instrumento de pagamentos global que pode sustentar transações instantâneas e muito mais baratas que as dos canais tradicionais. Com a escala planetária do Facebook, a transformação completa do dinheiro tal qual o conhecemos é só uma questão de tempo.

O Facebook, evidentemente, não é a única corporação de grande porte a testar essas águas. Também na primeira semana de junho, um consórcio de 14 dos maiores bancos globais liderado pelo suíço UBS anunciou que pretende colocar de pé um sistema de transações internacionais com base no blockchain de modo a reduzir custos. O banco americano JP Morgan está trabalhando aceleradamente para começar os negócios com sua própria moeda virtual baseada em blockchain, a JPM Coin, que servirá para acelerar e baratear transações entre filiais do banco ao redor do mundo. E a rede de supermercados americana Target também divulgou, na segunda-feira 10, seus planos para lançar uma moeda própria.

Assim, o que era algo restrito a uns poucos aficionados por tecnologia chegou às grandes empresas. Em um artigo divulgado na segunda-feira 10, Matt Higginson, Atakan Hilal, e Erman Yugac, todos consultores-sênior da McKinsey, dizem que o mercado de pagamentos é um cenário perfeito para essa experimentação. Por seus cálculos, as remessas internacionais de pessoas físicas movimentam cerca de US$ 600 bilhões todos os anos e o volume cresce 3% a cada 12 meses. Mas há muitos problemas. “As taxas são elevadas, de 2% a 3%, podendo chegar a 10%, e o processo é lento e opaco”, escreveram. Isso explica porque, ainda em 2017, as firmas americanas de capital de risco tinham reservado US$ 1 bilhão para investir em criptomoedas.

VAREJO Esse movimento chegou ao Brasil. Na quarta-feira 12, a Febraban aproveitou o Congresso Interamericano de Automação Bancária (Ciab), que é o principal evento tecnológico do setor, para divulgar a Rede Blockchain do Sistema Financeiro Nacional. Ela será usada, a princípio, para compartilhar informações entre os bancos (como a identificação de celulares usados em transações financeiras), em uma tentativa de reduzir o número de fraudes. Essa, porém, é uma parte menor da história. O melhor vem agora.Até hoje, para possuir qualquer soma em dinheiro, era preciso adquiri-lo.

As formas para isso eram basicamente vender mercadorias, prestar serviços, ceder horas de trabalho ou permutar por outra moeda. Nas últimas décadas, essas transações tornaram-se também virtuais: zeros e uns trocando de lugar nos servidores dos bancos e das processadoras de cartões de crédito e débito. Mas o dinheiro continuou sendo um objeto que, passivamente, trocava de dono. Isso só mudaria com o surgimento das criptomoedas. “O benefício do blockchain é trazer para o mundo do dinheiro uma eficiência que ele não tem”, afirma Guga Stocco, CEO da GR1D, co-fundador da Domo Invest e um dos conselheiros da Wiboo, empresa brasileira criada com a ambição de disseminar o uso de uma criptomoeda varejo, Wibx.

Zuckerberg: o Facebook prometeu divulgar os detalhes da criptomoeda libra no dia 18 de junho (Crédito:Alain Jocard / AFP)

“O blockchain torna o dinheiro programável, seguro e acessível”, resume Guga. Para entender melhor, tomemos como exemplo a futura moeda virtual do Facebook. Ela pode servir não só para que um usuário venda uma gravação rara de uma banda que fez sucesso nos arredores de Plymouth nos anos 1960 e de quem não se ouviu falar desde então. Além de satisfazer os fãs, as moedas virtuais poderão garantir, de maneira automática, que os herdeiros dos músicos sejam remunerados pela criação dos pais todas as vezes que as melodias forem transacionadas.

Há mais. A enorme flexibilidade das moedas virtuais permite a adoção de modelos de negócio muito variados. No Brasil, empresas de pesca oceânica vêm desenvolvendo usos de criptomoedas para identificar atuns capturados nas águas brasileiras, e um consórcio de empresas do setor de consumo está estudando substituir o tradicional envio de amostras grátis ao varejo pela distribuição de moedas virtuais. “Isso permitirá reduzir custos e zerar desvios”, diz o advogado Fernando Barrueco, diretor jurídico da Bolsa de Moedas Virtuais Empresariais de São Paulo (Bomesp). E a empresa americana Ripple desenvolveu uma plataforma de remessas já usada por cerca de 200 bancos em 40 países (leia mais nos quadros).

TRÊS EM UM O desenvolvimento das moedas permite superar algumas das deficiências do Bitcoin que o transformaram em um bom ativo para se investir (ou especular), mas que dificultaram sua adoção como meio de pagamento. No caso do Bitcoin, a analogia mais evidente é com o ouro (daí a necessidade de “mineração” da moeda). O valor depende da escassez e da limitação do recurso, algo que foi estipulado por seu criador. No caso da criptomoeda brasileira Wibx, seu nascimento não se deu a partir de um só modelo de negócio, e sim de três: ser criptoativo, moeda para o varejo e meio de fidelização. “Pegamos três plataformas e criamos uma nova”, diz Pedro Alexandre, criador do Wibx e CEO da empresa Wibbo. A premissa é, portanto, entregar valorização, recompensa ao usuário (como os programas de fidelidade) e promover a descentralização da publicidade (como fazem as redes sociais, por meio do engajamento).

Por trás do desenvolvimento do Wibx está uma cooperação inédita com o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos, no interior paulista. “O Vale do Silício, nos Estados Unidos, se tornou o que é por causa de Stanford”, diz Guga, que acumula entre suas funções a de embaixador do Stanford Research Institute (SRI) no Brasil. “Nós temos o ITA”. A ligação entre o instituto que projeta aviões e o Wibx não é formal. Trata-se de uma cooperação do tipo ganha-ganha, na qual hipóteses desenvolvidas por ambas as partes são testadas para verificar sua viabilidade prática. “Validamos a tecnologia para poder posicionar o Wibx não só como mais uma criptomoeda e sim como uma ferramenta capaz de integrar anunciantes e clientes de uma maneira inédita”, diz Alexandre. Nesse ponto, o Wibx pode ser comparado a um cartão de crédito.

A fatura traz não apenas dados da compra, como também os pontos acumulados no programa de fidelidade do usuário. Até aí, nada de novo. Mas o Wibx pretende dar um passo além. A recompensa pode vir não apenas do uso como moeda, mas também do engajamento, mesmo que nada seja comprado. “Ela se torna o próprio cashback do marketing”, afirma Alexandre. Como? “O anunciante consegue obter um mercado inédito de atenção no celular, aproveitando todas as interações que a moeda permite, e ainda se beneficia de todas as métricas que só o blockchain pode oferecer.” Assim, segundo seu criador, o Wibx nasce lastreado por um orçamento de marketing já pré-determinado. Desenvolver sua utilização como meio de pagamento no varejo e veículo publicitário é que fará com que a moeda se valorize.

Fabrício Toda: mercado bitcoin vê com bons olhos a regulação das criptomoedas e de exchange pela Receita Federal (Crédito:Divulgação)

“O exchange é uma das formas de ganhar com o Wibx”, diz Fabrício Tota, diretor de OTC em grandes clientes no Mercado Bitcoin, corretora trabalha com as cinco maiores criptomoedas do mundo e que atualmente está em fase de integração com a Wibx, que será a sexta do portfólio e a primeira nacional. Tota lembra que a valorização do Bitcoin foi de cerca de 8.000% em dez anos e que a oscilação está sujeita a externalidades, como ocorre com todo criptoativo (confira a evolução de valores nos quadros).

A recente valorização do Bitcoin, depois de meses em queda, se deveu a uma restrição à compra de dólares determinada pelo governo chinês em meio à guerra comercial com os EUA. “O mercado acreditou mais no Bitcoin que no Yuan”, diz Guga, destacando que qualquer susto econômico pode fazer uma criptomoeda ganhar ou perder valor. “A volatilidade depende do ambiente, da confiança e do conhecimento que se tem sobre a moeda”, afirma. Como as criptomoedas ainda são uma novidade, pouca gente se familiarizou com seu funcionamento. Mas, ainda segundo Guga, que é membro dos conselhos consultivos da B3, Carrefour e Hapvida, “muitos empreendedores estão entrando nessa mudança de mindset do mercado financeiro”. Isso inclui a regulamentação de cada país.

Há um mês, a Receita Federal emitiu a primeira regulação específica de criptoativos e exchange. “A gente viu com bons olhos o fato do uso desse tipo de recurso ter sido reconhecido”, diz Fabrício Toda, da corretora Mercado Bitcoin, que tem 1 milhão de clientes e transaciona as cinco principais criptomoedas do mundo, como Bitcoin, Litecoin e Ethereum. Ainda que as transações globais possam variar de acordo com cada regulação, no Brasil a regra é simples: qualquer um pode comprar e vender criptomoeda usando a intermediação de uma corretora, e o imposto é de 15% sobre o lucro na venda.

EM TESTES Depois de ter passado pelo ICO (Initial Coin Offering, ou oferta inicial de moeda), a listagem do Wibx ao Mercado Bitcoin aguarda apenas a integração das duas plataformas, que será concluída dentro do próximo trimestre. Assim que houver a possibilidade de conversão (a troca da criptomoeda por dinheiro), ela estará apta para ser aceita também no varejo.

Neste momento, segundo Pedro Alexandre, há vários parceiros em teste, de construtoras a lanchonetes. “Nós fomos aceitos como sócio-fornecedor da Associação Nacional de Restaurantes para fazer a integração com as grandes redes de alimentação do País”, afirma Alexandre. “A gente montou uma força-tarefa para o lançamento”, completa João Marinho, também conselheiro do Wibx. “A chance de as pessoas entrarem nesse ecossistema por engajamento traz uma inclusão digital e financeira que nenhuma moeda permite”. Essa é mais uma das maravilhas desse admirável mundo novo do dinheiro.


Controle sobre os processos

Um dos principais problemas ambientais é a superexploração dos oceanos por meio da pesca predatória. A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) lançou o primeiro programa para preservar a vida marinha em 1982. Mais nove protocolos se seguiram, e o mais recente deles é de 2018. Mesmo assim, o problema permanece. Até 2016, as únicas ferramentas para controlar a pesca predatória eram a fiscalização de portos e navios. Naquele ano, porém, foi criada uma criptomoeda para permitir identificar os peixes fisgados e acompanhar seu processamento, da água até as prateleiras dos supermercados.

A primeira espécie a ser rastreada foram os atuns. São peixes valiosos. No dia 9 de janeiro, o proprietário de uma rede de restaurantes no Japão pagou um valor recorde de US$ 3,1 milhões por um atum do Atlântico de 278 quilos (sim, R$ 43,6 mil o quilo). Nos últimos anos, os armadores internacionais identificam o que capturam por meio da Tuna Coin, também sustentada pela tecnologia blockchain. “Com preços tão elevados, há muitos incentivos para que armadores pesquem mais do que o permitido”, diz o advogado Fernando Barrueco, da Bolsa de Moedas Virtuais Empresariais de São Paulo. “O uso da moeda virtual permite identificar os peixes ao longo de toda a cadeia produtiva, o que dificulta que o produto da pesca ilegal entre no sistema.”

Segundo o advogado, mecanismos semelhantes podem ser adotados por outros setores. Um dos projeto em análise na Bomesp envolve um consórcio de empresas de consumo que estuda substituir o envio de amostras grátis pela distribuição de uma moeda virtual, ainda a ser criada. “Isso permite rastrear o destino de quem recebeu os brindes, evitando o risco de que eles sejam comercializados irregularmente”, diz o advogado.


De olho nas remessas

O total de remessas internacionais entre pessoas físicas movimenta US$ 600 bilhões por ano. As transferências para fazer girar as rodas do comércio exterior chegam a US$ 10 trilhões anuais, em um mercado que cresce 3% ao ano e cujos custos de transação podem chegar a 3% do valor enviado. De olho nesse filão, a empresa americana de tecnologia Ripple desenvolveu uma rede de transações internacionais baseada na tecnologia blockchain. “Ela nos permite fazer transações instantâneas e seguras, evitando os riscos das oscilações das taxas de câmbio em momentos de volatilidade”, diz Luiz Antonio Sacco, diretor-geral da Ripple na América Latina. As transações podem ser processadas por meio da moeda virtual XRP, uma das cinco mais negociadas ao lado de Bitcoin e Ethereum. Quem envia converte a moeda do país de origem em XRP, a criptomoeda é transferida e novamente convertida na moeda do país de destino. Segundo o executivo, o processo pode levar poucos minutos. “Em alguns casos, o processo tradicional pode levar até dois dias”, diz ele.

Fundada há sete anos, a Ripple tem 200 clientes em 40 países. No Brasil, ela atende bancos de varejo, como o Santander, e instituições financeiras de nicho, como o Banco Rendimento, especializado em câmbio, e a plataforma de transações financeiras digitais Bee Tech. A empresa não trabalha diretamente no varejo, mas proporciona aos bancos uma estrutura mais rápida e barata para movimentar dinheiro. Segundo Sacco, em tempos em que as autoridades estão mais rigorosas na identificação dos clientes, o uso da tecnologia blockchain facilita o trabalho. “Como a moeda é um ativo inteligente, ela permite que a identificação dos clientes seja enviada junto com os valores transferidos”, afirma o executivo.

Com reportagem de Cláudio Gradilone