Há três hábitos diários de que o carioca Stelleo Tolda, presidente do Mercado Livre, maior plataforma de e-commerce da América Latina, não abre mão. E nada tem a ver com internet ou videogame, como se poderia definir o estereótipo de alguém com tecnologia na veia. O primeiro hábito, nas primeiras horas do dia, é a prática de atividade física. O segundo, nas horas vagas do expediente — quando existem horas vagas —, é acompanhar as notícias do seu time de coração, o Flamengo. O último, e talvez o mais importantes deles, é desligar o celular e se desconectar do mundo por volta das oito da noite. “É o momento que tenho para estar com minha família, conversar com minhas duas filhas e me desligar de tudo que esteja fora de casa”, afirmou o executivo, ao destacar a postura de paizão que mantém com suas “meninas” de 18 e 20 anos. “Sou caseiro e gosto de ter tempo para assistir a meus filmes e séries, ou de estar na arquibancada dos jogos do rubro-negro, como estive exatamente um ano atrás, quando vencemos a Libertadores, em Lima”, disse Tolda, sem demonstrar qualquer sinal de preocupação em gerar uma má impressão entre os aficionados pelo mundo digital.

A forte ligação com as filhas e com o time de coração pode dar uma pista de seu estilo de gestão. Aos 53 anos, dos quais as últimas duas décadas foram dedicadas ao Mercado Livre, Tolda tem conquistado, ano após ano, a reputação de pai do e-commerce no País. Foi ele quem ajudou a estruturar a primeira multinacional de varejo eletrônico no Brasil — com carta branca da ainda pequena empresa de capital argentino. “Quando inauguramos a operação do Mercado Livre no Brasil, 20 anos atrás, meu grande desafio era explicar para o consumidor o que era um e-commerce”, afirmou o executivo, sorrindo de um cenário sem comparação com a realidade atual, em que 10% do varejo nacional está no ambiente digital, com potencial de chegar a 20% dentro de cinco anos. “A missão hoje é ter as rédeas da companhia e gerenciar a complexidade de um negócio que envolve comércio, serviços financeiros e logística”, afirmou.

ANO HISTÓRICO A julgar pelos números, a missão tem sido cumprida. Neste ano de pandemia, isolamento social e fechamento do comércio, o Mercado Livre — por razões óbvias — vem registrando os melhores resultados de sua história. Apenas no terceiro trimestre (julho a setembro), período marcado pela escalada recorde do desemprego e retração do PIB, a companhia obteve um salto de 117,1% nas vendas na comparação com o mesmo período de 2019, superando US$ 5,9 bilhões em apenas três meses. Com isso, a receita líquida alcançou US$ 1,1 bilhão, alta de 148,5% na moeda brasileira.

No acumulado de janeiro a setembro, as vendas no site chegaram a US$ 14,3 bilhões, alta de 41,5% sobre os US$ 10,1 bilhões dos nove primeiros meses de 2019. “Estamos crescendo mais do que a média do mercado porque estamos conseguindo suprir a expectativa de um consumidor que é naturalmente ansioso e quer receber os produtos o quanto antes”, afirmou o presidente, referindo-se ao compromisso de entregar 80% das vendas em até dois dias.

“A missão hoje é ter as rédeas da companhia e gerenciar a complexidade de um negócio que envolve comércio, serviço financeiro e logística”

Sob a atenção de Tolda, o Mercado Livre tem construído o status de uma Amazon da América Latina. Sozinha, a companhia possui uma base de 76,1 milhões de usuários únicos ativos, quase o dobro de todo o e-commerce brasileiro, comparativamente. Essa multidão de clientes, registrada no fim de setembro, corresponde a um nada modesto crescimento de 92,2% no confronto ao total contabilizado em 2019. “O desempenho só reforça a convicção que já tínhamos antes da pandemia, de que, entre as maiores economias do mundo, o Brasil é o único, dadas as suas dimensão e escala, que tem capacidade de dobrar em poucos anos”, afirmou Tolda.

O potencial é, de fato, imenso. Pelas projeções da consultoria NeoTrust, na China o comércio on-line se aproxima de 30%, enquanto nos Estados Unidos está entre 17% e 19%. Para André Dias, diretor da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm) e CEO da Neotrust/Compre&Confie, o Mercado Livre de Tolda tem sido protagonista de um processo de transformação no varejo brasileiro. “Com aumento da capilaridade das vendas, entrada de milhares de novos consumidores e lojistas, além da diversificação do mix de produtos comercializados na internet, tudo poderá ser comprado via e-commerce, desde produtos de farmácia até itens básicos de supermercado”, disse.

Stelleo, filho de um casal de classe média que garantiu seus estudos de engenharia em Stanford, no Vale do Silício, afirma que não há planos de longo prazo para sua carreira, em um mercado que passa por uma frenética transformação. Mas pode ser que a maneira discreta e comedida seja uma herança de sua família portuguesa da região de Trás-os-Montes. Seu pai, José Fonseca Tolda, foi sócio de Pedro Passos em uma famosa loja de discos especializada em Bossa Nova, a Modern Sound, em Copacabana. Mas essa é outra história. Agora, quem dita o ritmo da música do e-commerce brasileiro é Tolda-filho.

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