O ESCRITOR AMERICANO Mark Twain costumava dizer que existem três tipos de mentiras: as mentiras propriamente ditas, as mentiras sagradas, que são os mitos religiosos, e as estatísticas. Na semana passada, o IBGE divulgou um dado que era aguardado pelo mercado. O crescimento do PIB no terceiro trimestre, justamente o período que antecede a crise internacional, mostrou que o Brasil vinha voando. A taxa de expansão da economia ficou em 6,8%, no que foi o 270 trimestre seguido de aumento da produção ? em 12 meses, a taxa acumulada já é de 6,3%. O problema é que logo se fez a leitura pessimista, como se a nova estatística do IBGE pudesse ser enquadrada no rol das mentiras de Mark Twain. Isso porque os dados desse ?Pibão? captariam uma imagem de retrovisor, que aponta só o passado ? e não o futuro incerto que estaria batendo à porta. A sensação era a de que o garçom recolheu as bebidas e desligou a música no melhor momento da festa. Mas será que é essa a análise mais correta? ?O número é muito forte e está acima das melhores expectativas?, diz o economista Francisco Lopes, ex-presidente do Banco Central e sócio da Macrométrica, especializada em análises macroeconômicas. Isso significa que o Brasil ficará imune à crise? Certamente que não. Mas ainda que o quarto trimestre deste ano aponte uma freada ? como todos os analistas prevêem ?, o Brasil terá de fazer força para crescer menos de 6% em 2008 e entrará mais robusto em 2009.

Essa conclusão pode ser traçada a partir da decomposição dos números do IBGE. Os dois aspectos mais importantes foram o aumento do investimento e a expansão do consumo das famílias, que cresceram 19,7% e 7,3%, respectivamente. O primeiro ponto revela que as empresas nacionais estão finalizando um grande ciclo de expansão da capacidade produtiva. A Sadia, por exemplo, fechará 2008 tendo aplicado cerca de R$ 1,6 bilhão no País ? um recorde nos seus 64 anos de vida. A maior unidade, em Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso, visa a atender o mercado da China, que está se abrindo à carne de frango brasileira. O presidente da empresa, Luiz Fernando Furlan, diz que a companhia poderá responder aos aumentos de demanda de forma mais ágil, quando a turbulência passar. ?Estamos prontos para as oportunidades que certamente irão surgir?, diz ele. Na questão do consumo das famílias, ele vem sendo puxado por ganhos de renda e pelo aumento da massa salarial ? desde o início do ano, o saldo de contratações com carteira assinada supera dois milhões de pessoas. ?Não vejo ninguém deixando de comprar por conta da crise?, disse à DINHEIRO o empresário Nabil Sahyoun, presidente da Alshop, a associação que reúne os maiores shoppings do País. Ele aposta num Natal de recordes no seu setor, que reúne 644 shoppings e 81 mil lojas ? 4 mil inauguradas neste ano. ?Pelo que eu vejo nos locais que visito, sempre lotados, o Brasil crescerá até mais do que 6%?, diz ele.

No setor de bens duráveis, a situação é mais delicada. Especialmente na indústria automobilística, cujos dados dos dez primeiros dias de dezembro apontaram uma queda de 10% nas vendas, na comparação com novembro, e de 32% em relação ao mesmo mês do ano passado. Isso se deve a um problema de estoques. Como o crédito escasso dificultou a venda de usados, o preço dos veículos de segunda mão desabou, travando o mercado de automóveis novos. Estima-se que as concessionárias tenham hoje um estoque de 600 mil usados e 300 mil novos. Para enfrentar esse problema, o governo lançou um pacote agressivo de medidas na semana passada. Depois de um encontro com 29 empresários, o presidente Lula zerou o IPI incidente na venda de carros populares, que era de 7%. Outros modelos também terão a carga fiscal reduzida (leia quadro acima). ?A queda do imposto terá de ser repassada para o consumidor?, disse à DINHEIRO o ministro do Desenvolvimento, Miguel Jorge.

O lado bom do câmbio O Brasil faz um ajuste necessário na moeda, sem gerar inflação, graças à crise internacional

Diz o ditado que, enquanto alguns choram, outros vendem lenços. Desta vez, o lenço está nas mãos dos exportadores, que já comemoram a alta do dólar. Bom para eles, mas também para o País. Antes da crise, a economia brasileira estava organizada sobre um câmbio valorizado. Agora, com a tendência de um dólar ao redor de R$ 2,30 em 2009, o equilíbrio entre mercado interno e externo tende a ser mais saudável. ?Mais uma vez, o governo Lula está tendo sorte?, diz o economista Francisco Lopes. ?Pode ajustar o câmbio sem gerar inflação, o que só é possível em meio a uma recessão mundial.?

Para a agropecuária, que também puxou o PIB do terceiro trimestre de 2008, a desvalorização do real vem em boa hora. ?Isso pode compensar a queda das commodities, garantindo uma boa rentabilidade em 2009?, disse à DINHEIRO o empresário Otaviano Pivetta, do grupo Vanguarda, que cultiva 300 mil hectares de grãos em Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso. É a mesma cidade onde a Sadia está concluindo seu maior investimento, que visa a atender o mercado asiático. Com câmbio favorável, a empresa aposta que conseguirá reverter as perdas que teve com derivativos antes da crise. Nos últimos anos, o crescimento econômico esteve ancorado na força do balanço de pagamentos ? e isso fica mais simples com o novo quadro cambial.

O governo também criou novas alíquotas de imposto de renda, numa medida que pode gerar reduções de até 50% para aqueles que estão na base da pirâmide salarial. Ao todo, as desonerações fiscais somam R$ 8,4 bilhões. ?Isso vai permitir um crescimento do PIB de 4% em 2009?, diz o ministro da Fazenda, Guido Mantega.

?Não é um desejo, mas sim uma meta.? Para que esse quadro se confirme, um ponto é essencial: a preservação do nível de emprego. Na reunião com os empresários, que durou 3h50, Lula fez um apelo a cada um deles para que não demitisse. Havia até a expectativa de que a ajuda do governo às montadoras ficasse condicionada ao compromisso das empresas de que manteriam postos de trabalho. Se a queda de vendas de automóveis em dezembro fosse projetada para o próximo ano, isso significaria reduzir a produção em 30%, o que equivaleria a eliminar o terceiro turno. Em Betim, principal pólo da indústria automotiva mineira, o sindicalista Marcelino Rocha, que representa os metalúrgicos, já contabiliza 900 demissões.

O pacto pelo emprego, no entanto, não foi acordado. Pouco antes do final da reunião, Guido Mantega chamou o presidente da Anfavea, Jackson Schneider, num canto do salão oval para começar a discutir a desoneração do IPI. Por alto, o ministro afirmou que iria zerar a alíquota para os carros populares e que, em troca, gostaria que as montadoras suspendessem quaisquer planos de demissão de funcionários. Schneider tergiversou. ?Não podemos dar garantias que dependem de variáveis futuras?, disse à DINHEIRO. ?Temos de ver o decreto publicado e quais serão os efeitos para as montadoras. Só poderemos ter uma noção mais concreta em um mês. Até lá, o cenário ainda é de incerteza.? Já no Ministério da Fazenda, Mantega apresentou a proposta da desoneração aos presidentes das montadoras, que valerá até 31 de março. Foi unânime a aprovação à medida. Como cada ponto de IPI representa cerca de 0,8% a 0,9% do preço final de um carro popular, cálculos iniciais da Anfavea mostram que o desconto poderá ficar entre R$ 1,3 mil e R$ 1,5 mil num automóvel que custa R$ 24 mil. Esses valores valem para os carros que ainda estão nos pátios das montadoras e, portanto, não foram faturados ? isso significa que os próximos fins de semana deverão ser marcados por grandes liquidações. Na GM, que realizou quatro feirões consecutivos, o movimento cresceu 25%. ?Isso mostra que o consumidor está disposto a comprar, apesar do crédito mais rígido?, diz o presidente Jaime Ardilla, que toca um plano de US$ 1,5 bilhão em investimentos. Na rival Volkswagen, o presidente Thomas Schmall foi à Alemanha para ampliar os R$ 3,2 bilhões que já tem para investir. ?Temos que enxergar o que o Brasil será daqui a alguns anos, não o que vai acontecer no mês que vem?, diz ele.

Essa visão de longo prazo é o que ajuda a diferenciar o Brasil dos outros países que atravessam a crise. Dias atrás, um estudo da Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento, a OCDE, apontou que o País será aquele que terá a desaceleração mais suave em 2009. Entre as grandes economias, o Brasil foi também o único país que teve um terceiro trimestre de 2008 melhor do que o segundo. ?O que muita gente não enxerga é que, ao contrário dos Estados Unidos, que estão no fim de um ciclo de expansão, o Brasil ainda está no começo do processo?, diz o economista Paulo Guedes. O quadro seria melhor se o Banco Central tivesse reduzido os juros na semana passada ? o que até poderia ter feito tecnicamente. Mas a gritaria antes da reunião do Comitê de Política Monetária foi tão intensa, que os diretores do BC, liderados por Henrique Meirelles, tiveram de manter a taxa Selic em 13,7% para reafirmar sua independência em relação ao Executivo. Apesar disso, os dados do PIB divulgados na semana passada, se lidos corretamente, podem ajudar a consolidar o crescimento. ?O Brasil está bem melhor do que algumas análises catastrofistas que têm saído por aí?, disse o empresário Emílio Odebrecht, sócio do terceiro maior grupo privado do País, ao sair do encontro com o presidente. Ele tem razão.