Desde que a operação Lava Jato eclodiu, revelando as incestuosas relações entre empreiteiras e políticos de todos os escalões, uma pergunta tem reverberado tanto na iniciativa privada como no coração do governo federal. As empresas envolvidas nos escândalos de corrupção, que desviaram dinheiro da Petrobras e de outras estatais para políticos e seus partidos, sobreviverão? Com multas bilionárias a serem pagas, companhias como a Odebrecht ainda lutam para fechar um acordo de leniência que envolva os quatro órgãos responsáveis: o Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria Geral da União (CGU), o Ministério Público Federal (MPF), o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Advocacia Geral da União (AGU). E ainda está longe de fechar.

Quem afirma isso é o ministro da Transparência, Fiscalização e Controladoria Geral da União (CGU), Torquato Jardim. Aos 67 anos, ele diz que a principal dificuldade é encontrar um denominador comum entre os órgãos para calcular o valor das multas. “No Brasil, assim como para pessoa física não se admite a pena de morte, a falência é pena de morte da empresa”, diz Jardim. “São 600 mil empregos diretos e indiretos em jogo.” Na entrevista que segue, realizada antes da bombástica delação dos irmãos Joesley e Wesley Batista ser noticiada, Jardim, fala também sobre a regulamentação do lobby, financiamento privado de campanha política, e o Brasil que emerge depois da Lava Jato. Depois da divulgação da delação, indagado sobre o caso que envolve o presidente Temer, o ministro se negou a responder. Acompanhe:

DINHEIRO – O Brasil está vivendo uma situação única, sobretudo, pelo que a Lava Jato tem depurado. Diante disso, o senhor acredita que a corrupção terá fim? O Brasil vai mudar?

TORQUATO JARDIM – A corrupção é da natureza humana. O Brasil faz hoje uma investigação de entranhas como nenhum país do mundo faz. O que o Ministério Público Federal faz é notável, o que a Justiça Federal faz é ainda mais notável. Para quem acompanha os processos e investigações, o trabalho do Tribunal de Contas da União (TCU), da Transparência CGU, da Advocacia Geral da União (AGU), estamos revirando as entranhas da sociedade brasileira. Há muita corrupção? Há. Mas há muita reação à corrupção. O que acho sadio é que o organismo social, apesar de doente, reage para superar a doença.

DINHEIRO – Mas vai mudar?

JARDIM – O Moro (juiz Sérgio Moro) e os próprios procuradores da Lava Jato já disseram que a operação é uma oportunidade de mudança. Vai se consolidar? É uma boa interrogação. Acho que essa consolidação se dará no primeiro domingo de outubro de 2018, quando o Brasil eleger o seu novo Congresso Nacional. Se houver uma renovação ética, de compromisso com os princípios fundamentais do Estado brasileiro postos na Constituição, haverá uma transformação. Porque, se o eleitorado que, afinal, é quem tem a voz e a decisão, não for adequadamente informado e esclarecido a rever o que se passa no Brasil, não é do topo do Congresso Nacional, do Executivo e do Judiciário, em Brasília, que vai sair o novo Brasil.

DINHEIRO – Na Suécia, um deputado federal usou parte das milhas que acumulou voando como parlamentar em seu benefício. Ele fez uso do equivalente a R$ 3,8 mil para comprar amendoim e vinho. Isso foi um escândalo enorme no país. O senhor acha que em algum dia chegaremos num patamar como esse, em que um desvio de R$ 3,8 mil seja visto como um absurdo e não com naturalidade?

JARDIM – Cada sociedade é uma sociedade, e cada uma tem o seu resquício. A formação sociológica brasileira é muito complexa. Os portugueses das galés esvaziando as prisões de Lisboa para colonizar o Brasil, a influência da Igreja Católica Apostólica Romana, a miscigenação dos portugueses com os índios, com os escravos, a paternidade responsável que é forte até hoje… É muita costura nesse quadro social todo que resulta nesse quadro político. Mas insisto: está na mão do eleitorado, em outubro do ano que vem. São dois terços do Senado e toda a Câmara dos deputados.

DINHEIRO – Trazendo para o mundo dos negócios, as empresas estão mais preocupadas com ética e compliance?

JARDIM – As investigações de corrupção no Brasil, já antes no Mensalão e agora com a Lava Jato, expuseram as empresas brasileiras às consequências internacionais da corrupção. Esse é o conceito. A corrupção não dá margem de lucro, a corrupção não compensa. Os acordos internacionais da ONU, da OEA, da OCDE, a lei inglesa e a lei americana, impõem aos investidores internacionais condições de vinda ao Brasil, que forçam o País mudar a regra do jogo. Um ato ilícito no Brasil tem consequências na lei americana no território americano, na lei inglesa no território inglês e assim em outros países.

DINHEIRO – Ou seja, não podem operar em outros países e nem receber investimentos…

JARDIM – Não podem. As empresas brasileiras, para receberem investimentos e fazerem investimentos, deram-se conta que precisam ter conduta de acordo com os padrões internacionais. Daí, as leis brasileiras surgiram. A de responsabilidade fiscal, a de anticorrupção, a das estatais, a de conflito de interesses, as ações do Cade, do MPF, da Transparência CGU. Então, criou-se um ambiente novo, no qual as consequências são muito boas, e o futuro permite um otimismo de que haverá uma mudança cultural. O mundo está ficando pequeno. Hoje não há nenhum negócio relevante limitado a um território nacional. Todo negócio relevante na economia é transnacional.

DINHEIRO – Mas, mesmo com todos esses pontos que o senhor listou, com leis e controles já existentes, as empreiteiras praticaram crimes. O que fazer para coibir? A prisão e a proibição de operar fora do País são os melhores exemplos?

JARDIM – Temos de analisar sob três ângulos. O ângulo legal é as empresas darem-se conta das consequências do Mensalão e da Lava Jato e, consequentemente, terem programas internos de integridade e uma seleção cuidadosa de executivos. O segundo tem um efeito administrativo de relações com o poder público. Hoje, o poder público é muito mais criterioso para escolher com quem vai transacionar. Veja a questão dos contratos da Petrobras e do BNDES. Nem o presidente da Petrobras e nem a do BNDES sentem-se à vontade ainda de ter novos contratos com as empresas investigadas que fizeram acordo de leniência com o Ministério Público Federal. Porque, pela lei, ainda faltam a Transparência CGU, a AGU e o TCU. Há uma consequência administrativa complexa, de ordem constitucional. O terceiro é a percepção política lato-sensu. Os parlamentares e os governos não querem mais estar associados a essas empresas. Essa é a grande sanção, política e social. Hoje, jovens economistas e engenheiros se formam e não querem trabalhar em empresas da Lava Jato. Essa combinação é que vai fazer a grande transformação.

Sede da Odebrecht, em São Paulo. A empresa pagará multas bilionárias
Sede da Odebrecht, em São Paulo. A empresa pagará multas bilionárias (Crédito:Rivaldo Gomes/Folhapress )

DINHEIRO – O senhor falou dos acordos de leniência e dias atrás a AGU pediu na Justiça um ressarcimento de R$ 11,3 bilhões das empresas investigadas pela Lava Jato. Houve discordância dos outros órgãos. Há uma disputa de egos?

JARDIM – Quando o presidente Michel Temer me convidou para assumir o recém-criado ministério da Transparência ele disse que o meu primeiro trabalho seria de diplomacia. Ele estava equivocado. O meu primeiro, segundo e terceiro trabalho é a diplomacia. Somos quatro entidades constitucionais com competência anticorrupção, o TCU, o MPF, a AGU e a Transparência CGU. Desde quando assumi, foi isso. Conversar com os três e encontrar meios comuns de ação. Cada um tem sua especialidade e a nossa dificuldade é compatibilizar a vontade de trabalho.

DINHEIRO – Qual seria a principal dificuldade?

JARDIM – Compatibilizar o critério de cálculo da sanção financeira. Como é que calcula a multa? Cada um tem um critério. O segundo desafio é saber quanto cobrar. A lei tem de ter uma interpretação inteligente. E isso significa recuperar as empresas pelo que elas têm de expertise, pela quantidade de equipamentos comprados e subsidiados com benefícios fiscais. E terceiro, não menos importante, são as pessoas. São 600 mil empregos diretos e indiretos, são quase 100 mil engenheiros formados em empresas públicas. Também é retorno do investimento. Quando você conclui a investigação, a empresa investigada traz, de uma auditora independente, um laudo sobre o limite de capacitação para pagar a multa. Até tanto, paga a multa, depois disso, vai à falência. Então, no caso da Odebrecht, que pagou mais de US$ 2 bilhões de multa nos EUA, pagou ao MPF e agora sofre uma ação de R$ 11,3 bilhões da AGU, a grande interrogação é: ela pode pagar tudo isso de multa e continuar viável economicamente?

DINHEIRO – E pode?

JARDIM – Isso tem de ser investigado. Se a soma disso tudo implicar numa falência, a compreensão da lei não foi inteligente. No Brasil, assim como para pessoa física não se admite a pena de morte, a falência é pena de morte da empresa. Ou seja, você tem de punir, cobrar, mas manter o corpo vivo para ser útil para a sociedade. O que falta é compreensão coordenada do papel institucional de cada um, até onde vai o papel de cada um e onde começa o papel coletivo. E falta, coletivamente, os quatro terem um critério único do cálculo da multa a ser paga.

DINHEIRO – Esta longe disso?

JARDIM – Está longe. Está mais próximo do TCU e mais distante do MPF.

DINHEIRO – Aí o senhor mexe com os egos…

JARDIM – É você que está dizendo. Eu sou advogado, não sou psicólogo, embora casado com uma psicóloga.

Quando ocupava o cargo de ministro do STF, ele divulgava toda a sua agenda
Quando ocupava o cargo de ministro do STF, ele divulgava toda a sua agenda (Crédito:Adriano Machado / Ag. Istoé)

DINHEIRO – Qual é a posição do senhor sobre a profissionalização do lobby no Brasil?

JARDIM – O lobby é uma forma alternativa de representação de interesses. A representação da sociedade civil perante o Estado não se esgota no modelo da eleição de mandatos eletivos representativos. Há também interesses específicos de grupos sociais, corporativos ou profissionais para que suas demandas cheguem ao Executivo e ao Legislativo por outros caminhos. Isso é normal, é direito constitucional de petição. O que fizemos no ministério da Transparência é um grupo de trabalho para reestudar e reencontrar toda essa legislação. Temos uma proposta que entregaremos (a proposta foi entregue na quarta-feira, 17 de maio)ao presidente da República. O mínimo de burocracia e o máximo de representação. Há uma série de requisitos muito objetivos, simples de serem cumpridos e verificados.

DINHEIRO – Por exemplo?

JARDIM – Tem que ter procuração (o lobista), seja por advogado ou por diretor de sindicato ou associação. Com quem quer falar e qual é o assunto? Disponibiliza no site de cada ministério e autarquia num espaço dedicado para a agenda. Mas a eficácia disso depende da eficácia de cada órgão. Com uma diferença, o ato será fiscalizado pelo ministério da Transparência. Teremos um time interno exclusivamente dedicado para fiscalizar as agendas. Não interessa fiscalizar a hierarquia, mas o tema. Por exemplo, não é o ministro de Estado, não é secretário executivo, não é diretor de departamento que prepara minuta de edital de licitação. É o quinto ou sexto escalão técnico. Então, se alguém vai se dirigir a quem está concebendo a regra do jogo, precisamos saber. O Joaquim Barbosa deu um exemplo de transparência quando era ministro do STF.

DINHEIRO – O que ele fazia?

JARDIM – O advogado pedia audiência e ele concedia. Mas colocava no site o nome da parte, o número do processo e o nome do advogado. E o convite para as demais partes interessadas a comparecerem na mesma hora. Acabou. Fica descortinado quem é quem, quem participa do jogo e com qual finalidade.

DINHEIRO – Quando o senhor acredita que será aprovado?

JARDIM – Aí eu não sei. O timing político não é meu.

DINHEIRO – Como o senhor avalia o financiamento de campanha e como evitar que, em 2018, o temido caixa 2 seja usado pelos partidos?

JARDIM – Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Se eu tivesse resposta, ganharia Oscar, Emmy, Tony e todos os prêmios do cinema, da música e do teatro. Eu gosto muito da ideia de um juiz da suprema corte americana, nos anos 60, julgando o processo famoso Baker versus Carr sobre a constitucionalidade da doação eleitoral. Abre aspas, ‘dinheiro é como água, sempre encontra uma saída’. Sou a favor de um sistema que tenha verificação e transparência sofisticada, não a proibição. A proibição dá prazer, o adultério era crime no código penal e ninguém deixou de trair. O desafio para mim é admitir a participação de todos os doadores em um sistema sofisticado de controle.

DINHEIRO – Como sofisticar esse controle?

JARDIM – Tudo o que a Lava Jato apurou está baseado em tecnologia. Aplica essa tecnologia na eleição, é fácil. O serviço de inteligência da Receita Federal, o serviço de inteligência do ministério da Trans-parência. Não faltam meios. O sistema financeiro combinado com a Polícia Federal, com o MPF, com a Abin, Receita Federal… Os governos Federal e estaduais têm mais de 300 bases de dados. Junta isso tudo e você controla a doação eleitoral.

DINHEIRO – Mas não podemos esquecer que o controle fica nas mãos dos governantes. Como dar autonomia para as instituições não sofrerem pressões?

JARDIM – Acho que esse é o Brasil do passado, não é mais o Brasil do presente e nem será o Brasil do futuro. A Lava Jato é um turning point, é uma nova vertente. Se você tiver um programa de cruzamento dessas bases de dados sob a jurisdição da Justiça Eleitoral, você controla em larga escala a vastíssima maioria das doações eleitorais.