Colocar seu cartão na maquininha. Selecionar a opção débito ou crédito. Conferir o valor. Digitar a senha. Esperar a transação ser aprovada. Guardar (ou não) o comprovante em papel. Esse procedimento corriqueiro lidera com folga a lista de assuntos desinteressantes. No entanto, nos últimos dias, ele vem despertando fortes emoções. Mudanças nessa atividade estão sacudindo empresas estabelecidas há anos. Premidas pela agressividade de novos participantes, as maiores processadoras de pagamentos estão mudando as regras do jogo. Conhecidas pelo nome pouco amigável de empresas de adquirência, elas estão reduzindo taxas e presenteando os comerciantes com os equipamentos para processar transações, as maquininhas, tudo para ampliar (ou preservar) suas participações de mercado.

Paulo Caffarelli, da Cielo: “Lucros de R$ 4 bilhões são algo que não existe mais” (Crédito:Marcus Leoni/Folhapress)

O movimento começou com a Getnet, empresa de adquirência do banco Santander. No dia 8 de abril, a companhia anunciou que reduziria a taxa cobrada de varejistas que vendiam a crédito — de 3,75% para 2% do total. Essa taxa, conhecida como Merchant Discount Rate, ou MDR na sigla em inglês, é o elemento mais importante do faturamento dessas empresas. A Getnet também reduziu para dois dias o prazo de pagamento para o comerciante. O prazo anterior era de 30 dias. A condição para isso é que o vendedor use a SuperGet, maquininha destinada ao varejo de menor porte. “Nossa ideia é ajudar no processo de bancarização e de digitalização dos empreendedores”, diz Pedro Coutinho, presidente da Getnet.

O movimento começou a agitar o mercado. E os acontecimentos se precipitariam dez dias depois. No dia 18 de abril, a Rede (adquirente ligada ao Itaú Unibanco) anunciou duas mudanças. O prazo de pagamento aos comerciantes foi reduzido de 30 para dois dias (assim como a Getnet). Além disso, ela deixaria de cobrar a taxa de antecipação, que os varejistas pagam para receber o dinheiro da venda antes do combinado (não confundir com a MDR). A vantagem não vale para todos. Para se beneficiar, o varejista tem de ter uma máquina da Rede, conta no Itaú e não pode faturar mais de R$ 30 milhões por ano. “Há uma demanda crescente dos nossos clientes para reduzir os prazos de liquidação”, diz Marcos Magalhães, presidente da Rede. “Essa demanda não existia há dez anos, mas hoje é uma realidade de mercado.”

A mudança deflagrou a maior movimentação da história dos meios de pagamento. Nos dois pregões seguintes, as ações das concorrentes desabaram. A arquirrival Cielo, controlada por Bradesco e Banco do Brasil, viu suas ações caírem 9,9%. Em Nova York, os papéis da empresa independente Stone, que abriu capital no ano passado, caíram 26,5% até a segunda-feira. E as ações da PagSeguro, vinculada aos acionistas do grupo Folha da Manhã, também sofreram. A queda foi de 12%.

Marcos Mansur, da TrustPay: “O que o Banco Central tentou fazer sem sucesso está sendo realizado pelo mercado” (Crédito:Gabriel Reis)

A reação foi rápida. No dia 19, em plena Sexta-Feira Santa, a Safrapay zerou a MDR cobrada de lojistas sobre operações à vista e parceladas nos cartões de crédito. A adquirente ligada ao Banco Safra estendeu a oferta para clientes com faturamento entre R$ 3 mil e R$ 20 mil. Passada a Páscoa, a PagSeguro divulgou que os vendedores vão receber o dinheiro imediatamente após a venda. Pensa que acabou? Na quarta-feira 24, ao anunciar uma queda de 40% nos lucros do primeiro trimestre, Paulo Caffarelli, presidente da líder de mercado Cielo, divulgou que os vendedores também vão receber os recursos no mesmo dia. Os investidores não se animaram com os resultados nem com a mudança: no dia da divulgação, as ações caíram 4,4%. Pragmático, Caffarelli reconhece que é preciso se adaptar aos novos tempos. “Rompemos vários tabus aqui na empresa, como o de não vender equipamentos, apenas alugá-los”, diz ele. “Temos de reconhecer que, hoje, os equipamentos são uma commodity.” Segundo o executivo, o movimento de compressão das margens ainda deve continuar por mais algum tempo.

O acirramento da disputa entre as empresas de pagamentos está longe de acabar. De um lado, estão as adquirentes ligadas a bancos, que ainda hoje dominam o negócio. Até dez anos atrás, Cielo e Rede dividiam o mercado, com mais de 95% de participação conjunta. Isso mudou. Atualmente, a participação conjunta emagreceu para cerca de 70%, sendo a fatia Cielo um pouco maior do que a da Rede. No início da década, as duas companhias dividiam um mercado que, em 2018, processou R$ 1,5 trilhão em pagamentos.

Marcos Magalhães da Rede: “Demandas dos clientes que não existiam há dez anos hoje são uma realidade do mercado” (Crédito:Claudio Belli/Valor)

Cobrando taxas médias de 4% e alugando as maquininhas para os clientes, ambas as companhias desfrutavam de lucros fartos e recorrentes. Tanta fartura, claro, atraiu a atenção da concorrência. Há nove anos, o Santander começou a investir na Getnet, cujo controle assumiu em 2016. A empresa ostenta hoje um honroso terceiro lugar, com 13% do mercado. Outras companhias tentaram mordiscar essa atividade, mas foram derrotadas por duas barreiras de entrada: a necessidade de manter redes funcionando todo o tempo no vasto território nacional e as pesadas exigências regulatórias do Banco Central (BC).

Tudo começaria a mudar em 2014. O BC alterou as regras para facilitar a organização de novas empresas do setor. A tecnologia também mudou, com o lançamento de processadoras mais simples, acopladas a celulares. E, mais importante, os recém-chegados apostaram, corretamente, em um nicho de mercado que vinha sendo ignorado pelas empresas estabelecidas: a massa de pequenos empreendedores que não tinham relacionamentos bancários.

A pioneira foi a PagSeguro. Apoiada em uma campanha de marketing agressiva, a empresa inovou ao vender as maquininhas em vez de alugá-las, e a transferir os pagamentos a um cartão pré-pago, que não requeria conta bancária. O negócio deu tão certo que a companhia captou US$ 2,3 bilhões vendendo suas ações em Nova York, em janeiro de 2018. Com dinheiro em caixa, ela vai continuar mirando no segmento original. “Entendemos que os micro e pequenos empreendedores do país, que são a maioria dos nossos clientes, são carentes de serviços financeiros e buscam empresas que os ajudem na missão de crescer seus negócios”, informou a PagSeguro em um comunicado enviado à DINHEIRO. A companhia afirma ter 4,1 milhões de clientes e uma participação de mercado ao redor de 5%.

Pedro Coutinho, da Getnet: “Queremos ajudar na
bancarização e na digitalização dos empreendedores” (Crédito:Silvia Costanti / Valor)

Na esteira da PagSeguro surgiram novas adquirentes. A maior delas é a Stone, que abriu seu capital em Nova York em outubro do ano passado e captou cerca de US$ 1,2 bilhão. A companhia caracteriza-se por uma campanha comercial agressiva. Tanto que incomodou a concorrência. Na quarta-feira 24, a Rede divulgou um comunicado reclamando de um executivo da Stone que dirige uma associação do setor. Ele estaria “divulgando informações infundadas a respeito da nova política comercial da Rede” (leia a íntegra do comunicado no portal da DINHEIRO). “Não fizemos nada que fosse questionável. Não há aumento de outros preços ou serviços, os benefícios são transferidos para o varejo”, diz Magalhães, da Rede. “Os concorrentes estão desinformando o mercado.” Procurada, a Stone não atendeu aos pedidos de entrevista.

Empresas ligadas a bancos e adquirentes independentes ainda vão protagonizar muitos lances desse tipo. “O mercado está vivendo uma mudança de modelo”, diz Marcos Mansur, sócio-diretor da gestora de recursos SRM. A companhia lançou sua própria adquirente, denominada TrustPay. A expectativa para o primeiro ano de operação é processar R$ 35 bilhões em transações por meio de 90 mil maquininhas. A partir de 2020, a meta é comercializar 120 mil máquinas por ano. E Mansur sabe que terá de acompanhar os novos tempos. “Esse movimento de antecipação de recebimentos é mundial”, diz ele. “O Banco Central tentou reduzir o prazo por meio da regulamentação e não conseguiu, mas agora isso está sendo feito pelo mercado.” Segundo Mansur, essa tendência beneficia o varejo, e a redução dos custos financeiros poderá ser estendidas ao consumidor, na forma de preços menores.

No entanto, a bonança para as empresas de adquirência é coisa do passado. Municiadas pelo enorme caixa dos bancos e pelas barreiras tecnológicas e regulatórias, as companhias tradicionais puderam garantir tanto suas fatias de mercado quanto suas margens polpudas. Agora, tendo de enfrentar concorrentes agressivos, com dinheiro em caixa e acesso a novas tecnologias, as líderes têm de se conformar com um cenário mais adverso. Como disse Caffarelli, da Cielo, ao comentar os resultados. “A Cielo de R$ 4 bilhões de lucro é uma empresa que não existe mais.”

Colaborou: Lucas Bombana