Pode parecer uma luta de egos, um sonho infantil de bilionários, uma jogada de marketing pessoal. Mas existe um enorme negócio inexplorado por trás dessa aparente aventura. A Nova Corrida Espacial sai da contagem regressiva e aciona os foguetes com o anúncio de dois “competidores” prontos para colocarem suas vidas em risco acima da Linha de Kármán, o traço imaginário que separa a atmosfera terrestre do espaço. Para o domingo (11), estava prevista a partida de Richard Branson, controlador do Virgin Group. Jeff Bezos, fundador da Amazon, deve zarpar nove dias depois (falaremos deste delay logo mais). Um terceiro competidor vai ficar olhando daqui: Elon Musk, fundador da Tesla. O que isso tudo tem em comum, além de muito dinheiro em jogo, é uma mudança sem paralelos em sete décadas: por trás de uma Nova Era não estão mais as grandes nações e sim civis bilionários. Bezos, homem mais rico do mundo (US$ 210 bilhões de fortuna), Musk (3º mais rico, com US$ 163 bilhões) e Branson (520º, US$ 5,7 bilhões).

Não há loucura desvairada nisso. Os três personagens estão há quase duas décadas com empresas no ramo. Bezos fundou a Blue Origin em 2000. Musk criou a Space X em 2002. E Branson lançou a Virgin Galactic em 2004. Todas com contratos milionários com a Nasa, praticamente salvando a barra dos norte-americanos no envio de satélites e cargas para fora da Terra — negócio zerado com o fim do programa dos ônibus espaciais, em 2011. Aliás, esse é o verdadeiro objetivo por trás de tudo: satélites. É onde Musk e Bezos apostam. Branson foca especificamente no promissor turismo espacial. “Ir para o espaço é um sonho para a maioria das pessoas, então espero que com mais pesquisa e desenvolvimento nessa área, os voos se tornem mais frequentes e acessíveis para mais pessoas. Para nós cientistas da área e ótimo”, disse à DINHEIRO o cientista brasileiro Ivair Gontijo, que trabalha na Nasa no sistema de radares de espaçonaves que descem à superfície dos planetas.

A ciência agradece, mas o marketing está à frente. O que ele imprime na mente das pessoas é que esses bilionários têm tudo e querem ir para onde escassas cinco centenas de humanos já estiveram. Hoje, com US$ 250 mil você compra um assento e embarca em direção ao destino desses afortunados. “Eu realmente acredito que o espaço pertence a todos nós. Depois de 17 anos de pesquisa, engenharia e testes, a Virgin Galactic está na vanguarda da nova indústria espacial”, afirmou Richard Branson. O que vamos ver nas próximas décadas é um clube restrito se formando, de gente muito rica compartilhando a “viagem derradeira”, o destino a que poucos podem ir. O Monte Everest? Antártica? Quem se importa se você tirar seu celular e mostrar imagens suas do espaço.

ACIDENTE A competição entre os três tem nuances parecidas às da Guerra Fria entre Estados Unidos e a antiga União Soviética. É disputada linha a linha. Branson, que partirá em seu avião-espacial VSS Unity, reagiu malandramente ao ouvir que Bezos anunciou a ida ao espaço no voo de sua Blue Origin para o próximo dia 20 com outros cinco passageiros. Educadamente, postou no Twitter: “Parabéns @JeffBezos pelo anúncio de seu plano aeroespacial!”. Um gentleman, um sir… Até o dia seguinte, quando anunciou: “Vou no dia 11 de julho!” Ambos projetos têm vários voos realizados. O de Branson já passou, até, pelo revés de um acidente que matou um piloto, em 2014, e atrasou em dois anos os trabalhos. Ainda assim, os riscos são evidentes. São lideranças colocando suas vidas como prova dos negócios. Quantos CEOs fazem isso? Não à toa o fundador da Amazon deixou oficialmente o posto que ocupava na empresa justamente no dia 5 deste mês. “Estamos no processo de destruir este planeta. Então penso várias décadas para frente, e esse é o trabalho mais importante de minha vida”, afirmou Bezos, que quer construir colônias espaciais com hotéis e parques de diversão.

Musk, nesse aspecto, não é muito diferente de Bezos. Só que está com a cabeça mais em Marte. Excêntrico, debochado, o dono da Tesla pinta um sonho civilizatório de ficção-científica. Ele quer colonizar o planeta vermelho (o mais parecido com o clima da Terra em todo Sistema Solar) como seu plano final. É o que tem mais contratos bilionários com a Nasa e empresas privadas, o que construiu um negócio mais robusto e o que tem os foguetes mais legais — se ficarmos num termo infantil. “A Terra é o berço da humanidade, mas não quer dizer que precisamos ficar para sempre no berço”, afirmou Musk. Sua intenção é construir cidades em Marte. “Viajar e morrer lá”. Para o cientista Gontijo, isso deve acontecer nas próximas décadas. Não sem dificuldades. “Os problemas de engenharia ainda são gigantescos para se criar um ambiente propício à vida humana. Marte é inóspito”, disse o controlador do robô rover Perseverance, que está neste exato momento pesquisando o solo do planeta vermelho.

Exceto pilotos e cientistas, poucas pessoas ganharam um tíquete na história aeroespacial. Bezos e Branson, em seus voos, vão dar dois para passageiros célebres e secretos, que podem ser Tom Cruise ou Leonardo DiCaprio. Cruise, alguém que também pensa no que poucos seres humanos fizeram, já anunciou que vai fazer o primeiro filme rodado no espaço, na Estação Espacial Internacional, em parceria com a Nasa e carona de Musk. Segundo o engenheiro espacial Dallas Kasaboski, analista da Northern Sky Research, empresa especializada em projeções do setor espacial, a iniciativa de Musk ao levar famosos para o espaço é um meio para um fim. “Ele fará voos turísticos para desenvolver suas espaçonaves e criar confiabilidade, além de ganhar dinheiro com cargas”, disse à DINHEIRO. Companhias aeroespaciais não começaram ontem a levar viajantes privados para o espaço. A americana Space Adventures intermediou vagas para a Estação Espacial Internacional em espaçonaves russas, entre 2001 e 2010, com passagens de US$ 20 milhões a US$ 40 milhões.

PARA POUCOS Até agora, só sete pessoas foram ao espaço como turistas — número que deve ganhar escala rapidademente. Uma pesquisa recente nos EUA apontou que 39% das pessoas com patrimônio líquido de mais de US$ 5 milhões estariam interessadas em pagar US$ 250 mil à Virgin Galactic para voar até a borda do espaço. São aproximadamente 2,4 milhões de pessoas. Tem um negócio aí. Um de luxo, per se. A oferta é restrita, limitada à capacidade de promover voos, mesmo futuramente, já que uma espaçonave só poderia viajar umas cinco vezes ao mês. O clássico negócio para poucos. Por enquanto. Uma projeção da Northern Sky Research mostra que a receita potencial até 2028 para esses passeios é de US$ 14 bilhões. Branson, nesse sentido, fareja um Novo Mundo: “Não consigo pensar em nenhuma experiência que qualquer pessoa possa ter na vida que seja mais maravilhosa e extrema do que ir para o espaço.”

O REAL NEGÓCIO: SATÉLITES

Istock

Dos três bilionários de olho no espaço – Richard Branson, Jeff Bezos e Elon Musk – apenas o primeiro, um aficionado pela aviação, parece ter entrado nessa também pela diversão. A dupla Bezos e Musk está, na real, no negócio de foguetes. E foguetes que levam satélites para o espaço e retornam lindamente para a Terra para serem reusados, algo em que a SpaceX é pioneira. A Blue Origin veio logo atrás. O inglês Branson até lança pequenos satélites de um Boeing 747-400 com sua Virgin Orbit, mas a escala é bem menor. Para se ter uma ideia, hoje são mais de 5 mil satélites em órbita pela Terra, sendo que metade deles não funciona mais e são lixo espacial. Businessman algum entraria nessa sem se perguntar: “Onde está o dinheiro disso?” Bem, ele está lá em cima, atualmente na casa dos US$ 400 bilhões anuais. E pode chegar, até 2040, a US$ 1 trilhão, segundo a consultoria a Northern Sky Research, corroborada pelo Morgan Stanley. Musk, por exemplo, quer abocanhar uns 4% desse valorzão com seu Starlink, um cinturão de satélites de internet de alta velocidade e baixa latência. A SpaceX oferece um custo considerado baixo para enviar carga para o espaço: de US$ 5 mil a US$ 10 mil por quilo. Um valor fixo que clientes como a Nasa adoram, e não o antigo “vamos fazer e depois vemos a conta”. Graças aos empreendimentos privados, os EUA saíram da embaraçosa posição de 0% de lançamentos de satélites com o fim do programa dos ônibus espaciais, em 2011, um exemplo clássico do gastamos os tubos sem planejar – ou “por que o Estado não deve se meter em quase nada”. Os EUA durante esse tempo pegaram carona nos lançamentos russos.

Agora, com a SpaceX e outras (United Lauch Alliance, formada em 2006 pela Lockheed Martin e Boeing) respondem por 70% desse tipo de negócio. A empresa de Musk ganhou 40% dos contratos de lançamentos militares de segurança do governo americano entre 2022 e 2026. Sim, nada de Bezos nessa divisão, que protestou e pretende fazer com sua Blue Origin oito lançamentos por ano, tendo ganhado investimentos de US$ 2,5 bilhões de setores privados para isso. E os chineses? Acabam de pedir licença para duas constelações parecidas com a Starlink. Aparentemente, os bons tempos dessa deliciosa batalha espacial estão de volta.

SPACEX, DE ELON MUSK

Patrick Hoelck

Fundação: 2002.
Fábrica: 9,5 mil funcionários, em Hawthorne, Califórnia.
Valor da empresa: US$ 74 bilhões.
Total de lançamentos: 1 tripulado, mas já fez 122 sem passageiros.
Foguete: Falcon 9, o primeiro no mundo, classe orbital, reusável.
Cápsula: Dragon, capaz de levar 7 passageiros.
Custo atual da passagem orbital: US$ 50 milhões.
Contratos com a NASA: US$ 3,1 bilhões (programa Comercial Crew), além de mais US$ 135 milhões para desenvolver uma espaçonave de aterrisagem na Lua.
Projeto Inspiration 4: Primeiro voo orbital totalmente tripulado por civis, comandado pelo bilionário e piloto Jared Isaacman, com data prevista de lançamento para setembro deste ano.

A empresa de Musk é o big player em negócios e robustez entre os três bilionários. Sua grande adversária neste negócio é a United Launch Alliance, com quem Musk disputa contratos com a Nasa. A receita da SpaceX com envio de cargas e satélites está acima de US$ 5 bilhões. Como o voo de passageiros civis chama muito a atenção na batalha contra seus adversários bilionários, resolveu dar visibilidade maior para o negócio com um contrato com a empresa Axiom para quatro voos privados e turísticos, incluindo a Estação Espacial Internacional, a começar em 2022. A SpaceX recebeu o carimbo de aprovação da Nasa em atividades assim ao levar e trazer astronautas para a Estação Espacial Internacional em 2020. O primeiro voo turístico foi comprado por Jared Isaacman, que dará um assento para um sortudo que entrar em um leilão para a caridade com lances iniciais de US$ 100. Outro voo impressionante vai ser o com outro bilionário (entendemos, bilionários adoram ir ao espaço), o japonês Yusaku Maezawa, em sua volta pela Lua em 2023, primeira missão lunar desde 1972. Objetivo final de Musk, além de reduzir custos com transporte espacial, é realizar viagens para construir cidades em Marte até 2050, fazer a viagem e morrer no planeta vermelho. “Não no impacto ao chegar lá, claro”, disse.

VIRGIN GALACTIC, DE RICHARD BRANSON

Jonas Fredwall Karlsson

Fundação: 2004.
Fábrica: 823 funcionários, em Mojave, Califórnia.
Valor da empresa: US$ 8,6 bilhões; é uma das 400 companhias de Branson, em diversos setores, incluindo a Virgin Orbit, que lança pequenos satélites de um Boeing 747-400.
Total de lançamentos: 3, tripulados.
Avião: VSS Unity, com capacidade para 6 pessoas, mais piloto e co-piloto.
Avião-foguete mãe: VMS Eve.
Preço da passagem: US$ 250 mil (600 pessoas já fizeram suas reservas, para 2022).
Contratos com a NASA: programa de recrutamento e treinamento de astronautas, sem valor divulgado.
Acidente: Em 2014, quando um erro humano causou a desintegração de parte do avião, matando o piloto e deixando o co-piloto gravemente ferido.
Próximo lançamento: 11 de julho, com Branson a bordo.

A aventura de Branson, o mais velho dos bilionários, com 70 anos, se assemelha mais a um voo comercial. A pequena aeronave é acoplada a um avião especial que decola do belo espaço-porto da própria Virgin, no Novo México, para depois de uma hora no ar, soltá-la. Assim que se vê livre, leve e solta, a Unity dispara seu único foguete e continua a subida até 90 quilômetros de altitude. Por vários minutos sua tripulação experimenta a falta de gravidade e vê a Terra por uma de suas 17 janelas. Até iniciar o voo de volta à Terra… isso sem nenhum jato, foguete ou hélice! Sim, ela volta suavemente plainando e a brincadeira não é para os que não aguentam frio na barriga. Todo o processo dura 2h30. O objetivo da Virgin Galactic é ser pioneira nesse tipo de voo, “abrir o espaço para todos”. Quer expandir suas operações para até 400 voos por ano, com lindíssimos espaço-portos em Abu Dhabi, Itália, Reino Unido, Austrália e Suécia. Assim que a US Federal Aviation Administration der o OK final para os voos, não será difícil imaginar que Branson conseguirá seu intento. “Nós somos a vanguarda de uma nova indústria determinada a ser a pioneira em espaçonaves no século 21, que vai abrir o espaço para todos — e mudar o mundo para melhor.”

BLUE ORIGIN, DE JEFF BEZOS

Phillip Faraone

Fundação: 2000.
Fábrica: Washington, com mais de 3,5 mil funcionários.
Valor da empresa: não fez IPO; Bezos tem colocado na Blue Origin US$ 1 bilhão por ano em vendas de ações da Amazon.
Total de lançamentos: 15, todos sem tripulação.
Cápsula: Blue Origin, para 6 ocupantes (autônoma, sem nenhum piloto!) e vai durar 11 minutos na etapa suborbital, sendo 3 sem gravidade; pousa com ajuda de paraquedas, no deserto.
Foguete: New Shepard, de lançamento vertical e reusável por pelo menos 25 vezes.
Preço da passagem: Em leilão em junho, saiu por US$ 28 milhões
Contratos com a NASA: US$ 579 milhões para criar uma espaçonave de aterrisagem para o programa Artemis, que quer levar astronautas de volta à Lua em 2024.
Próximo lançamento: 20 de julho, com Bezos a bordo.

Bezos já disse que gostaria de construir uma colônia espacial com hotéis e parques de diversão, algo meio Disney no espaço. Tem como objetivo melhorar as viagens espaciais e tornar a exploração do mesmo mais acessível, com custo baixo e segurança. Será um voo panorâmico com tons de Las Vegas: lançamento vertical, cadeiras confortáveis, grandes janelas para se apreciar a vista, muitas selfies dentro da cápsula. “Eu iria no de Bezos, definitivamente. Esses voos suborbitais não precisam lidar com reentrada na atmosfera, sistemas de suporte de vida. Parece mais seguro”, disse Salvador Nogueira, jornalista especializado em exploração espacial e consultor do projeto brasileiro de sonda lunar Garatéa. Assim que a Blue Origin voltar para a Terra, abre-se a bilheteria para os próximos voos, ainda sem valor definido. No braço foguetes mais potentes, para envio de satélites, Bezos é o segundo do trio e gosta de dizer que seu New Glenn volta à Terra em 95% das condições de tempo, pousando no Oceano Atlântico em um navio com estabilizadores hidrodinâmicos. Com baixo custo e alta confiabilidade, garantiu investimentos na casa de US$ 2,5 bilhões de setores privados. Quer fazer oito lançamento por ano.