Existe uma contradição semântica em chamar como democracia o lugar no qual votar é obrigatório. Precisamos exterminar por aqui essa praga que desconstrói nosso léxico e parar de dar às coisas nomes que são outras coisas. Qual seria o bom argumento para obrigar alguém a votar? Ou em qual país democrático e decente o voto é impositivo? Fui buscar no ilustríssimo sítio digital do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) algum motivo convincente sobre essa excentricidade. Zero. Mas há lá uma explicação que remete à herança maldita. Vêm do ano 1846 as primeiras punições nesse campo. “Multas para quem faltasse às reuniões dos colégios eleitorais ou não participasse da escolha de juízes de paz e vereadores”.

A punição prevista em 1846 é filhote da Constituição de 1824, a primeira. Eram os tempos de Império. E a nossa pioneira Carta Magna, que por essas latitudes e longitudes fará 200 anos daqui a dois outonos, determinava quem seriam os primeiros eleitores: homens maiores de 25 anos com dinheiro. Mulheres? Não. Negros? Não. Analfabetos? Não. Aqui deve ser o único lugar do planeta em que os deveres, mais que os direitos, são intrinsecamente e obrigatoriamente assimétricos entre as pessoas ­— e geraram distorções como a atual representatividade parlamentar brasileira. Nem vamos lembrar os tempos de bagunça de começo republicano, com dois militares de alma e gestos golpistas a comandar um país cuja República havia nascido por causa de fake news. Para completa surpresa de ninguém! (e sem Telegram).

Falar do passado não necessariamente é prazeroso, mas sempre é necessário. Até porque, como disse a jornalista e ensaísta americana Katherine Anne Porter (1890-1980), “o passado nunca está onde você pensa que o deixou”. E é ele que nos ajuda a entender o estágio deprimente atual, de um presidente que descaradamente enfrenta o Judiciário e o próprio sistema eleitoral, sob total subserviência do Congresso — devidamente cancelado com os Pix sob a rubrica Emendas Parlamentares (secretas). Junte-se a esse caldo o silêncio de boa parte da elite empresarial.

“O passado nunca está onde você pensa que o deixou” Katherine Anne Porter jornalista e ensaísta.

Domingo (24), a França foi escolher pela segunda eleição consecutiva entre Emmanuel Macron e a extremista de direita Marine Le Pen. Sem voto obrigatório, é claro. Não compareceram às urnas 28% dos eleitores. Foi o maior porcentual desde 1969. No Brasil, nas eleições presidenciais de 2018, preferiram não votar 21,3% das pessoas. Quase a França. Sem falar de 2,1% que votaram em branco e 7,4% que anularam. O recado é contundente: um a cada três eleitores brasileiros não quer votar, nem sendo obrigado e ameaçado (com multas, perda de direitos). Sem a obrigatoriedade, talvez a situação pule para um a cada dois eleitores ignorando o pleito. E tudo bem. Como ocorreu na recente disputa presidencial chilena, em que quase metade do eleitorado do país não apareceu. Lá, os votos em branco ou anulados ficaram abaixo de 1%. Foi eleito um esquerdista e sabe o que aconteceu institucionalmente? Nada. Muito distante do que vivemos no Brasil.

O pior parlamento nacional em décadas retrata de forma escancarada o escárnio político brasileiro. Nestas páginas, empresários e economistas de todos os matizes condicionam como única saída para o Brasil voltar a crescer de forma sustentada a aprovação de reformas estruturantes. Mas nenhuma delas existirá na realidade sem a mãe de todas: a reforma política. E essa nascerá pelo fim do voto obrigatório. É preciso transformar radicalmente o modelo, que nasceu errado no fim do século 19 e nunca conseguiu se libertar dessa sina desastrosa que nos envergonha como país. Vivemos hoje a era em que o Congresso pratica o parlamentarismo dos subterrâneos e a Presidência exercita o golpismo às instituições num ritual que só não se completou ainda pela falta de coragem de sair de vez das profundezas. Somente o posicionamento claro e contundente das elites produtivas e pensantes fará esse teatro de horrores encerrar, e enterrar, seu terceiro ato.

Edson Rossi é redator-chefe da DINHEIRO.