Ainda era noite quando os primeiros operários começaram a chegar. Pouco a pouco, pequenas rodas de conversa iam se formando no pátio de entrada da fábrica de motores da General Motors, em São José dos Campos, no interior paulista. Os metalúrgicos acendiam cigarros, falavam de futebol e se preparavam para mais uma assembléia. Muitos vestiam bermudas e chinelos. Outros, com macacões azuis, já pareciam prontos para o trabalho. De dentro da fábrica, supervisores tentavam identificar aqueles que poderiam estar incitando uma greve que já entrava no seu oitavo dia. Quando o sol raiou, na manhã da terça-feira 29, eles finalmente votaram. Os operários, que pediam a reposição da inflação de novembro de 2002 a fevereiro de 2003, calculada em 10,39%, exigiam ainda um gatilho salarial a cada 3% de alta de preços. Mas quando o sindicalista Luiz Carlos Prates, velho admirador de Lula, decidiu contar os votos dos operários, percebeu que era hora de encerrar a greve. ?Vamos continuar negociando com os patrões, mas no trabalho?, disse Prates, conhecido pelos colegas como Mancha. Com o desfecho das primeiras greves nas montadoras de automóveis desde novembro de 2000, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu afastar o que mais temia: um movimento organizado de reposição de perdas salariais que levasse à indexação e alimentasse a inflação, em pleno clima de 1º de maio.

Os empregados da GM voltaram às linhas de produção, mas a primeira celebração do trabalho no governo Lula, que prometeu criar 10 milhões de empregos durante a campanha, não será festiva. O carro-chefe do governo, o Primeiro Emprego, que concederia isenções fiscais às empresas dispostas a empregar jovens, deveria ser lançado em 1º de maio. Deveria. Foi adiado porque o ministro do Trabalho, Jacques Wagner, perdeu a queda de braço com o secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Marcos Lisboa, que avisou que não há recursos no orçamento para lançar o programa. Wagner não o questionou. ?Prefiro ser criticado pela demora do que pela precipitação?, disse o ministro. Além disso, os primeiros números do desemprego divulgados no governo Lula foram bastante ruins. A taxa de desocupação nas principais capitais, segundo pesquisa do IBGE, ficou em 12,1% no mês de março. É superior aos 11,6% medidos em fevereiro. Houve também uma aumento da precarização do trabalho. Mais de 75% do movimento ? escasso ? de criação de vagas em 2003 ocorreu na informalidade. E o rendimento real, que já vinha em queda desde 1998, recuou mais 7,2% no início do governo petista. ?A política econômica rendeu alguns frutos no campo da estabilidade, mas não está orientada ao crescimento?, adverte o economista Ricardo Carneiro, da Unicamp, que foi um dos redatores do programa de governo de Lula. ?Eu estaria mais feliz se tivesse visto Lula discursar comemorando a queda do desemprego, e não a queda do dólar?, afirma. Na sua avaliação, o governo ainda não lançou políticas públicas capazes de gerar empregos, utilizando o poder dos bancos oficiais e das estatais.

Sem um programa concreto para criar vagas, o Planalto articulou o fim das greves das montadoras. Num memorando, a Agência Brasileira de Inteligência alertou que uma onda de paralisações traria ?riscos de instabilidade institucional?. A greve da fábrica de motores em São José dos Campos já havia afetado a produção da GM em Gravataí, no Rio Grande do Sul, e em São Caetano, no ABC, paulista. As linhas da Renault, no Paraná, também haviam sido paralisadas. O ministro Jacques Wagner, foi convocado para mediar a disputa entre patrões e empregados. ?Não podemos permitir gatilhos salariais, que são incompatíveis com a lei?, avisou o ministro. Antes da assembléia de São José dos Campos, a direção da CUT, que atua afinada com o Planalto, negociou diretamente com os representantes da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, a Anfavea, uma forma de encerrar a greve fora de época da GM ? a data-base dos metalúrgicos ocorre apenas em novembro. Acertou-se o abono, garantiu-se que os dias parados não seriam descontados, mas a discussão sobre a reposição automática de perdas salariais a cada 3% de inflação foi enterrada. ?Não podemos criar gatilhos porque isso provoca mais inflação?, pondera João Felício, presidente da CUT. Para as montadoras, que há três anos convivem com um mercado interno estagnado em 1,5 milhão de veículos, foi um alívio. ?Nossas margens de lucro já vêm sendo duramente sacrificadas?, aponta Ademar Cantero, diretor da Anfavea.

O episódio também revelou uma inversão de papéis entre as centrais sindicais. A Força Sindical, que durante a era Fernando Henrique Cardoso era considerada subserviente ao governo, agora vem obtendo acordos melhores do que a CUT. Foi o que aconteceu na greve da Renault, que resultou em reposição de perdas, abono salarial e redução de jornada. Acordos semelhantes foram obtidos em negociações com a Volvo e a Volkswagen-Audi. ?Para a Força Sindical, que está na oposição, ficou bem mais fácil?, admite Felício, da CUT. E foi assim, livre da indexação salarial, mas sem bons números a oferecer e com um projeto trabalhista ainda engavetado, que o ex-sindicalista Lula chegou ao seu primeiro 1o de maio na condição de presidente da República.