Numa das maiores cooperativas agrícolas do país, a Cotrijal, no Rio Grande do Sul, o trigo anima os produtores. Depois de um verão de forte estiagem que prejudicou cultivos de soja e milho no estado, as terras das quase 19 mil propriedades associadas preparam a semeadura de inverno, com expectativa de crescimento de pelo menos 20% de área destinada ao cereal.

“O mais importante que influencia a decisão do produtor é o mercado. Temos dependido menos de governo, e o mercado do trigo dá sinal de preços atrativos”, avalia Gelson Melo de Lima, superintendente de Produção Vegetal da Cotrijal, sediada na cidade de Não-Me-Toque.

O interesse é relacionado à alta da commodity no mercado internacional. O preço, que já vinha subindo desde o ano passado, disparou depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, no fim de fevereiro. A cotação chegou a um patamar 78% maior que o registrado há um ano, aponta o Programa das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

A guerra trouxe instabilidade para toda a cadeia do cereal, o terceiro mais consumido do mundo, atrás do arroz e milho, segundo a FAO. A queda na oferta do trigo ucraniano e a desaceleração dos embarques da Rússia, potências fornecedoras, desorganizaram o mercado e movimentaram o setor no Brasil.

“Estamos vivendo uma nova era do trigo”, avalia Pedro Tombini, produtor e gerente comercial de uma empresa de sementes. “Há quatro anos, a saca era vendida por R$ 30. Hoje, o produtor vende pelo menos a R$ 94”, detalha o gaúcho.

Depois de anos de recuo e instabilidade, a área de cultivo do cereal no Brasil deve aumentar. Além de Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, responsáveis por cerca de 90% da produção nacional, São Paulo e Minas Gerais são outros polos importantes.

A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) observa a tendência de expansão, mas pontua que ainda é cedo para cravar os números. A semeadura do trigo começa em maio e segue até junho, com colheita até outubro. Antes de o plantio ter início, a Conab estimava que pelo menos 7,9 milhões de toneladas seriam colhidas até o fim do ano, 3% a mais que a safra anterior.

Do controle estatal à dependência do exterior

Originário do Sudeste Asiático, o trigo chegou ao Brasil por volta de 1530, com os colonizadores. Por ser uma gramínea que necessita de temperaturas mais frias, geralmente entre 10 ºC e 19 ºC, a produção se concentrou no Sul do país.

Embora tenha sido praticamente extinto em 1822 por causa da doença ferrugem, o cultivo reapareceu no século 20 e virou prioridade de Estado. Entre 1967 e 1990, a cadeia tritícola foi regulada pelo governo federal, com subsídios aos produtores e preço de venda garantido.

Com o fim da intervenção estatal, a área plantada encolheu de 3,91 milhões de hectares em 1986 – a maior já registrada no país – para 1 milhão de hectares em 1995. O período coincidiu com a criação do Mercosul, o que aumentou a competição e colocou a Argentina como uma das principais fornecedoras do Brasil.

“Estamos preocupados com a vulnerabilidade da dependência brasileira do fornecimento para atender o mercado interno. Importamos 60% da farinha que consumimos, principalmente da Argentina, Estados Unidos e outros países do Mercosul”, detalha Rubens Barbosa, presidente-executivo da Abitrigo, entidade que representa a indústria de moagem.

Expansão à vista

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) estima que há um potencial de até 22 milhões de hectares extras para o plantio no país inteiro. Para suprir a demanda interna, o avanço da cultura para o Cerrado é visto como uma alternativa.

“No Cerrado, existe um bom potencial, de 1 milhão a 2 milhões de hectares para próxima década. Isso significa um crescimento de até 100% da área que temos hoje”, explica Álvaro Dossa, analista da Embrapa Trigo.

Se os planos derem certo, o país deve passar de importador a exportador importante, avalia Barbosa. “Isso vai colocar o Brasil até como um possível fornecedor internacional. Nós estamos produzindo quase 8 milhões, o consumo é de 12 milhões. Se nos próximos anos houver aumento da área plantada e da produção, vai haver excedente para a exportação”, acrescenta.

Em 2021, a produção brasileira de trigo foi de 7,7 milhões de toneladas, com importação de outras 6,2 milhões. Por causa do preço internacional, nem tudo o que é produzido no Brasil fica no país – 1,1 milhão de toneladas seguiram para países como Arábia Saudita, Vietnã e Indonésia.

Impactos e incerteza

Nos estados do Sul, onde muitas terras não são usadas durante o inverno, a expectativa é que elas passem a receber mais trigo. “A área usada para plantios de verão, principalmente soja, é cerca de 5 a 7 vezes maior que a de inverno”, aponta Dossa, da Embrapa.

“Não dá pra fechar nossa indústria, que é a céu aberto, por quatro ou cinco meses. Tem que dar uma utilização melhor para a terra. Trigo é uma necessidade para nós”, afirma Gelson Melo de Lima, da Cotrijal

No Cerrado, em vez de ocupar novas áreas, o trigo entraria no processo de rotação com as outras culturas – principalmente a soja. “Isso significa que ele não está competindo com a soja, ou feijão. O trigo ajuda a quebrar o ciclo de certas pragas. Mas ele exige certas demandas, como altitude e temperatura”, detalha Dossa.

Apesar das expectativas, o cenário traz também temores. Para Edegar de Oliveira, diretor de Conservação e Restauração de Ecossistemas do WWF-Brasil, essa movimentação tem que ser acompanhada com bastante atenção.

“Aumentar a demanda por terra e por produção no Cerrado pode estimular, sim, mais desmatamento. É preciso olhar para áreas degradadas e dar a elas um uso mais nobre, além de medidas mais efetivas de comando e controle”, argumenta Oliveira, adicionando que o estimulo à expansão da cultura vai colocar mais sobrecarga no valor da terra e especulação imobiliária.

Entre agosto de 2020 e julho de 2021, o Cerrado perdeu 8,5 mil km² de vegetação nativa, o que significa uma alta de quase 8% em relação ao período anterior, segundo dados do Prodes Cerrado, coordenado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O monitoramento do segundo maior bioma do país, porém, foi praticamente paralisado em abril por falta de verba do governo federal.

“A questão da segurança alimentar, que ficou mais evidente na pandemia e com a guerra na Ucrânia, não pode ser usada como justificativa para aumentar a área de produção em detrimento da conservação ambiental. Não dá pra desconectar segurança alimentar e segurança climática, senão estamos fadados ao fracasso”, afirma Oliveira.