Em 2012, Ariel Lambrecht viajou de férias para a Alemanha. Quando resolveu pegar um táxi, ele descobriu que estava na moda usar aplicativos pelo celular para chamar o carro. Foi a partir dessa experiência que Lambrecht teve a ideia de criar algo similar no Brasil. Imediatamente, começou a trocar mensagens com Renato Freitas, seu sócio na startup Ebah, uma rede social para compartilhamento de conteúdo acadêmico. Quanto voltou ao País, a dupla, que havia estudado Mecatrônica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, convidou Paulo Veras, um colega de turmas anteriores do mesmo curso, para se juntar à empreitada. Foi a união de um trio que se completava. Freitas era o nerd, aficionado por tecnologia. Lambrecht tinha visão de produto. Veras era o homem da gestão, com mais experiência no mercado de empreendedorismo, por ter criado diversas startups. Em junho de 2012 surgia o 99 (ex-99Taxis), um aplicativo de transporte que recebeu cerca de R$ 50 mil da trinca de empreendedores para chegar ao mercado.

Renato Freitas, um dos fundadores da 99: ele era o nerd, aficionado por tecnologia

Quase seis anos depois, o 99 tornou-se, oficialmente, o primeiro unicórnio brasileiro, jargão usado pelos profissionais de tecnologia para designar as startups avaliadas em US$ 1 bilhão ou mais. Na quarta-feira 3, a operação foi comprada pela Didi Chuxing, considerada a “Uber chinesa”, que já detinha uma participação estimada de 30% no aplicativo. A Didi Chuxing pagou cerca de US$ 600 milhões pelas fatias detidas pelos fundos de investimentos Riverwood Capital, Monashees, Qualcomm Ventures, Tiger Global e Softbank, segundo fontes a par da negociação. Outros US$ 300 milhões serão investidos na expansão da operação pelo Brasil e pela América Latina – a informação não é confirmada pelo 99. Com isso, a gigante chinesa passou a deter o controle da startup. Na operação, o 99 foi avaliado em US$ 1 bilhão. “Esse novo nível de integração trará para a região um serviço de mobilidade ainda mais acessível e com mais valor agregado”, declarou Cheng Wei, fundador da Didi Chuxing, em um comunicado enviado ao mercado. “A globalização da operação é uma prioridade estratégica para a Didi.”

A trajetória de Lambrecht, Freitas e Veras não é muito diferente da de muitos empreendedores daqui e do Vale do Silício, nos EUA, onde estão localizadas as principais empresas de tecnologia do planeta. Eles começaram o 99 sem recursos e com uma ideia na cabeça. A mítica “garagem” que simboliza o espírito de empreendedorismo de muitas empresas pode ser representada na pequena casa na Avenida Ceci, próximo ao bairro do Jabaquara, na zona Sul de São Paulo. Lá, Lambrecht recebia pessoalmente os taxistas para fazer o cadastro e configurar o celular para usar o aplicativo. “Eles chegavam com o aparelho na caixa fechada”, contou Lambrecht, em uma entrevista à DINHEIRO em 2017. “Tinha uma banca em frente que ganhou muito dinheiro vendendo chips aos taxistas.”

Na época, o 99 competia com o Easy Taxi, que tinha rebebido investimento do fundo alemão Rocket Internet, e o SaferTaxi, bancado pelo argentino Kaszek Ventures. Sem recursos, os empreendedores não tinham dinheiro para anunciar ou expandir-se para outras cidades. A primeira decisão foi focar-se exclusivamente em São Paulo. A segunda foi desenvolver um aplicativo que fosse muito bom para o taxista, com o objetivo de ganhar mercado com o boca a boca entre eles. Ao contrário dos rivais, eles não cobravam nenhuma taxa. Além disso, o sistema do 99 começou a escolher os carros que chegavam mais rápido ao cliente.

Pode parecer insignificante esse detalhe, mas os motoristas acharam o critério justo e passaram a adotar o aplicativo. Em seis meses, Lambrecht cadastrou apenas 200 motoristas. Mas, em 2013, o empreendedor teve o primeiro indício de que a ideia poderia dar certo. O pequeno escritório começou a lotar de taxistas querendo usar o aplicativo e ele precisou contratar funcionários. “Um dia recebemos mais de 100 taxistas”, relembrou Lambrecht.

Nessa época, o 99 passou a ser notado por fundos de investimentos. O primeiro aporte aconteceu em julho de 2013. A aposta foi da Monashees, fundo brasileiro comandado por Eric Acher. Foi o que se chama no jargão da área de seed money (capital semente), um recurso pequeno para dar um impulso inicial ao negócio. O valor estimado dessa captação é de aproximadamente R$ 500 mil. Dois anos depois foi a vez de a Tiger Global investir na startup. Dessa vez, o cheque foi bem polpudo: US$ 15 milhões. No total, sem contar o novo aporte da Didi Chuxing, o 99 teve cinco rodadas de investimento, totalizando US$ 240 milhões. Só a Movile recebeu mais recursos entre as empresas iniciantes brasileiras. A dona do aplicativo iFood já teve aportes de US$ 271 milhões do Naspers e do Innova Capital.

Apesar do dinheiro farto dos fundos de investimento, o 99 manteve o estilo espartano dos primeiros dias. Quando recebeu o aporte da Monashees, os sócios resolveram abrir operação em outras cidades. Contrataram Juliano Fatio, um jovem que chegava de uma viagem de dois anos ao redor do mundo. O critério para decidir em que cidade expandir-se foi bem peculiar. Perguntaram ao novo empregado onde ele tinha amigos que poderiam hospedá-lo. A resposta foi o Rio de Janeiro. Por essa razão, a capital carioca foi a segunda cidade a receber o 99. Já com os milhões da Tiger Global – e a necessidade de acomodar cerca de 30 funcionários – Lambrecht resolveu investir em bancadas simples para os empregados. Foi até a loja de construção Leroy Merlin, comprou cavaletes e chapas de madeira MDF e montou, ele próprio, as mesas. “Levamos um pito dos investidores, que reclamaram que tínhamos dinheiro e precisávamos gastar”, afirmou Lambrecht.

Esses tempos heroicos, de fato, ficaram para trás. Não significa que o 99 saiu rasgando notas de US$ 100 ou bebendo água fervente com os aportes bilionários dos investidores – tanto que até hoje um dos valores da startup é “faça mais com menos”. Mas a companhia, que ainda pode ser considerada uma startup, ganhou musculatura. Hoje, o 99 conta com mais de mil funcionários, está presente em 400 cidades no Brasil e contabiliza 300 mil motoristas, tanto taxistas como motoristas de carros particulares. São aproximadamente 14 milhões de passageiros que já usaram seu aplicativo.

Por ostentar esses números, a companhia fundada por Lambrecht, Freitas e Veras se transformou na principal competidora da Uber no solo brasileiro. Comandada por Dara Khosrowshahi, a Uber tem ainda um ampla vantagem. Estima-se que ela seja dona de uma fatia de 60% de mercado. O 99 tem metade dessa participação. O Cabify, que se uniu à Easy Taxi em junho do ano passado, está na terceira colocação. “O Brasil será um dos mercados que vai crescer mais rápido nos próximos anos”, diz Alex Salkever, analista independente de tecnologia do Vale do Silício. “Investir em startups locais é a maneira mais fácil de entender como esse mercado funciona e de garantir um lugar à mesa nessas economias.”

A arena em que devem duelar Uber e 99 não deve ficar restrita ao Brasil. É consenso entre os analistas de que a Didi Chuxing resolveu comprar a startup brasileira para se expandir pela América Latina. “Ela está tentando superar a Uber e o campo de batalha se tornou global”, afirma Roger Kay, analista da consultoria americana Endpoint Technologies Associates. Na briga pelo território latino-americano, as duas companhias terão muitos desafios a enfrentar. “As empresas americanas e chinesas encontram grande dificuldade de competir na América Latina porque não conseguem superar as barreiras de idioma e cultura”, diz Vivek Wadhwa, diretor de pesquisas do centro de empreendedorismo da Duke University e professor da Carnegie Mellon University Engineering, no Vale do Silício. “É por isso que os empreendedores brasileiros precisam acordar e abocanhar as grandes oportunidades que estão surgindo.” Se Wadhwa estiver certo, essa será uma chance para que muitos empreendedores possam seguir caminho do trio fundador do 99, acelerando o nascimento de outros unicórnios no Brasil.