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David Rockefeller: O dirigente do Chase e embaixador informal dos EUA conheceu todos os presidentes brasileiros desde 1950

 

Como muitas crianças, David A. Rockefeller e seus irmãos eram orientados pelos pais a se exercitar com regularidade. Todos os dias, eles saíam de casa pela manhã e andavam de patins pela Quinta Avenida, ao lado do Central Park, até chegar à escola, no limite com o bairro do Harlem, em Nova York. Mas David e seus irmãos não eram crianças comuns. Netos de John D. Rockefeller, o barão do petróleo, o homem mais rico dos Estados Unidos, eles eram acompanhados durante o trajeto por uma limusine. Se um deles ficasse cansado, seguia o resto do caminho recostado no luxuoso banco de couro do Natch modelo sedan.

Se os ricos são diferentes de você e eu, como observou o escritor americano F. Scott Fitzgerald, os Rockefeller são únicos. Essa peculiaridade fica clara na autobiografia de David, Memoirs, recém-lançada nos Estados Unidos. Com 87 anos de idade, o neto de John D. Rockefeller tem muito o que contar. David foi o principal acionista e presidiu o Chase Manhattan Bank ? o maior banco do mundo durante boa parte do século 20. Mas não limitou sua atuação às finanças. Atuou como um embaixador informal do governo americano. Do líder russo Nikita Kruchóv a Saddam Hussein, incluindo todos os presidentes brasileiros desde 1950, David conviveu com todo mundo que importa no jogo diplomático internacional.

Em meio aos 103 países que visitou, o Brasil ocupa um lugar de destaque. ?É um dos meus países prediletos?, disse David em entrevista exclusiva à DINHEIRO. Ele fez 15 viagens ao Brasil, a última delas no ano passado. Ao abrir uma filial do banco aqui, nos anos 50, iniciou uma longa e feroz disputa pela internacionalização e pelo poder no Chase. Mais tarde, comprou uma fazenda no Mato Grosso com o dono do Unibanco, Walther Moreira Salles, onde caçavam onças. No Rio de Janeiro, sua filha Peggy morou numa favela, abandonou o sobrenome Rockefeller e virou ativista de esquerda. Foi David quem patrocinou a criação de uma receita econômica, o ?Consenso de Washington?, adotada na América Latina nos anos 90. ?Minha vida mudou desde que fiz a primeira viagem para a região?, registrou o banqueiro no livro.

Ler sua autobiografia ajuda a entender o que pensa a elite americana e é uma aula de como se constrói uma lenda. Nenhum outro sobrenome encarnou o papel do capitalista nos séculos 19 e 20 como Rockefeller. Desde criança, David foi educado como membro da ?primeira família real americana?. Ele foi o neto predileto de John D. Rockefeller. Criador da Standard Oil, John foi acusado de jogar baixo para obter o monopólio do petróleo nos EUA. Assim como outros magnatas da época de capitalismo selvagem americano, John foi apelidado de ?Robber Baron? ? Barão Ladrão.

 

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Rockfeller Center: David dá expediente no 56º andar do prédio construído pelo pai, em Nova York

 

David se lembra mais do avô
por outros traços: a profunda religiosidade e a filantropia. John inaugurou a tradição dos Rockefeller doarem fortunas para financiar obras sociais. Do Moma (Museu de Arte Moderna de Nova York) à Universidade de Chicago, o dinheiro dos Rockefeller se espalhou pelo mundo. Para David, a filantropia é fruto das práticas cristãs de seus avós. Para os críticos, é uma maneira de limpar as manchas de petróleo do nome da família.

Assim como a filantropia e a religiosidade, a disciplina de ferro e a formalidade no contato pessoal são marcas da família. Todas as noites, o pai de David, também chamado John, vestia terno e gravata para jantar com a mulher e as seis crianças. Se tinha algo importante a dizer, escrevia uma carta ao filho e uma cópia ia para o arquivo pessoal. ?Meu pai era formal?, escreveu David. ?Não era frio, mas raramente demonstrava afeto.?

Coleção de besouros. Os filhos viviam cercados de luxo. Todos os anos, passavam férias no Maine. Viajavam de trem em vagões particulares e um deles era reservado para os cavalos. Em outra mansão, em Pocantico Hills, o pai de David construiu uma ala para as crianças. O anexo abrigava piscina, sala de ginástica, pista de boliche, quadras de squash e tênis. Mesmo com os mimos, David era solitário. Convivia mais com tutores do que com outras crianças. Seu maior prazer era colecionar besouros. Como adulto, porém, teve acesso ilimitado a quase todo mundo, do criador da psicanálise, Sigmund Freud, ao pintor Matisse.

Sua devoção aos contatos pessoais começou na II Guerra Mundial. Ao atuar no serviço de inteligência do Exército americano no Norte da África, David começou a escrever fichas com os dados das pessoas que conhecia. Hoje, seu fichário de metal Rolodex tem 100 mil cartões. Aperta-se um botão, o carrossel gira e uma bandeja salta com a ficha desejada ? de Nelson Mandela a Fernando Henrique. ?Saber quem deve conhecer e saber como alcançá-lo é uma questão chave em todas atividades?, disse Rockefeller.

Além de montar sua enorme rede de contatos, o banqueiro investiu na formação acadêmica. Estudou economia com os melhores nomes de seu tempo. Foi aluno de Joseph Shumpeter, em Harvard, e de Friedrich von Hayek, na London School of Economics. Obteve um Ph.D. na Universidade de Chicago, fundada por seu avô. Depois de formado, seu primeiro emprego assalariado foi no Chase, onde trabalhou por 35 anos, e teve um longo envolvimento com o Brasil.

Em 1950, David fez uma viagem a trabalho pela América do Sul. Na visita, avaliou ?que a economia latino-americana não crescia por falta de crédito para as empresas?. O jovem banqueiro viu uma oportunidade de negócios. Em 1952, contra a vontade de outros diretores do banco, criou a Interamericana de Financiamentos e Investimentos ? braço do Chase no Brasil. Durante dois anos, a empresa deu dinheiro. Depois, o Brasil entrou em recessão e os críticos da internacionalização ganharam força. Para cortar custos, o Chase vendeu suas ações da Interamericana, em 1956.

Fazenda no Brasil. A Interamericana foi comprada por uma empresa dos irmãos Rockefeller e por sócios brasileiros. Virou o fundo de investimentos Crescinco. ?Muitos parceiros brasileiros criaram seus próprios bancos de investimento, uma indicação da validade do conceito original?, escreveu David. Entre os sócios, estava Walther Moreira Salles, que faleceu há dois anos. Walther era muito amigo de David e de seu irmão, Nelson (que chegou a vice-presidente dos EUA). Juntos, compraram a fazenda Bodoquena, no Mato Grosso, onde passavam longas temporadas juntos. ?Gostávamos de caçar onças?, lembra David.

 

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John D. Rockefeller: Avô de David foi acusado de jogar baixo para ter o controle do petróleo nos EUA

 

Em 1961, David voltou a tentar abrir uma filial do Chase no Brasil ? embora outros executivos considerassem as operações externas arriscadas demais, em especial com as turbulências do Brasil. O então vice-presidente do Chase pagou US$ 3 milhões por 51% do capital do banco Lar, de Antonio Larragoitia, dono da seguradora Sul América. O investimento só pôde ser ampliado vinte anos depois, ?em 1980, como resultado de uma conversa informal num coquetel em minha casa em Nova York, com Carlos Langoni, presidente do Banco Central.? No coquetel, David recebeu o ok do BC para comprar as ações restantes do banco Lar, que virou filial do Chase.

Enquanto subia na hierarquia do banco até chegar a presidente, David fez uma carreira paralela. Suas viagens para outros países serviram aos negócios do Chase, mas também foram úteis ao governo americano. Como embaixador informal dos EUA, travou negociações da China e Rússia ao Oriente Médio. Sua agenda registrou encontros até com ditadores como Alfredo Pinochet, do Chile, e Nicolau Ceausescu, da Romênia. Criticado desde os anos 60, quando os Rockefeller eram vistos como um símbolo dos malefícios do capital, David diz que os contatos com os ditadores eram importantes. ?Tínhamos que aprender como lidar com regimes autocráticos, totalitários e anticapitalistas?, disse o banqueiro.

Rebelião na família. Foi nessa época que enfrentou uma rebelião dentro de casa. Duas filhas se tornaram ativistas de esquerda. Uma delas, Peggy, morou na casa de outro amigo de David, o ex-prefeito do Rio de Janeiro Israel Klabin. Nesse período, ela se envolveu com questões sociais e viveu com uma família numa favela. ?Ela até levou David para almoçar lá?, lembra Klabin. Peggy se rebelou e parou de usar o sobrenome Rockefeller. Hoje, reconciliada com a família, dirige uma ONG que combate a pobreza, fala português fluentemente e visita o Brasil com freqüência.

Depois de lidar com as rebeliões em casa, David travou outra batalha fundamental em sua vida. No início da década de 70, o Chase enfrentou uma crise profunda, fruto de empréstimos imobiliários ruins e problemas administrativos e tecnológicos. Foi um momento chave na biografia do caçula dos Rockefeller, preocupado em provar que sua carreira se deve mais a méritos pessoais do que ao sobrenome. David conseguiu consertar o estrago no Chase e se aposentou, em 1981, aos 65 anos, festejado no banco.

 

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FHC e Rockefeller: ?O presidente entendia os problemas do País?

 

Desde então, continuou a peregrinação internacional, adicionando cartões ao fichário Rolodex e atuando em instituições internacionais. Em Harvard, há o instituto David Rockefeller de estudos latino-americanos. Ele também criou o Council of Americas e a American Society, que reúnem líderes dos países das Américas. ?Ele é apaixonado pelo Brasil?, diz outro amigo, o presidente do conselho de administração do grupo Brascan, Roberto Paulo Cezar de Andrade. ?Sempre que é preciso, ele abre alguma porta para o Brasil, até na Casa Branca.?

A fortuna da família se dissipou entre 60 herdeiros, mas David ainda é um dos 200 homens mais ricos do mundo, com patrimônio de US$ 2,5 bilhões. Sempre com um jeito educado, ?de quem não briga, mesmo quando provocado?, segundo Klabin, David mantém sua rotina. Vestido com terno, gravata, lenço no bolso e uma camisa com um discreto monograma com suas iniciais, ele dá expediente no escritório no 56o andar do Rockefeller Center, decorado com um quadro de Picasso. Nessa semana, porém, está fora. Foi ao Chile, participar de uma reunião da American Society. Mais de um século depois de seu avô fundar a Standard Oil, os Rockefeller não poderiam ter embaixador mais ativo.

 

A VOZ DOS ROCKEFELLER

 

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Aos 87 anos, David Rockefeller mantém uma velha paixão: participar dos encontros do Council of Americas e do American Society, organizações que criou para estreitar contatos entre empresários e governantes dos EUA e dos países da América Latina. Nessas instituições, ele discute o futuro da região. ?O Brasil tem um potencial enorme, mas a inflação sempre atrapalha?, disse David à DINHEIRO, antes de embarcar para uma reunião da American Society, no Chile.

DINHEIRO ? O que o sr. acha
do Brasil?
Rockefeller
? O Brasil é um dos meus países prediletos. Tenho muitos amigos e viajo regularmente para o País há meio século.
É uma das grandes nações do mundo e tem tudo para exercer
um papel mais importante do que tem hoje em dia.

Quem são seus amigos no País?
Um dos meus melhores amigos, Walther Moreira Salles, morreu há dois anos. Encontrei Walther em 1948, com meu irmão Nelson.
Eles se conheceram quando Nelson era coordenador das relações inter-americanas na Segunda Guerra e tornaram-se grandes
amigos. Juntos, compramos a fazenda Bodoquena, no Mato
Grosso. Outros dois grandes amigos são o Israel Klabin e o
Roberto Paulo Cezar de Andrade.

O sr. viajava com freqüência para a fazenda?
Era uma propriedade enorme (100 mil hectares), maravilhosa e muito selvagem. Tinha onze pistas de pouso e nenhuma estrada ligando uma a outra. Havia todo o tipo de animais selvagens, florestas e campos cultivados. Caçávamos onças. Gostávamos muito de ir lá. Há dez anos, vendemos a propriedade.

Sua filha morou numa favela no Rio de Janeiro e virou ativista de esquerda. O que o sr. pensa desse episódio?
Minha filha veio para o Brasil comigo e gostou. Ela passou alguns verões com a família de Israel Klabin, no Rio de Janeiro, e trabalhou nas favelas. Graças àquela experiência, envolveu-se em projetos de desenvolvimento social em todo o mundo. Seu trabalho é atrair governos e o setor privado no combate à pobreza. Muito de seu conhecimento veio do Brasil.

O sr. conviveu com todos os presidentes brasileiros desde 1950. Como foi essa experiência?
Todas as relações com presidentes foram amigáveis e felizes.
Lembro de Vargas, Kubitschek, Goulart, Sarney. O que conheci mais recentemente e gosto muito é o presidente Cardoso (Fernando Henrique). Senti que entendia os problemas do Brasil e lidava da maneira correta com eles.

O sr. diz no livro que havia resistência entre outros diretores do Chase em investir no Brasil. Por quê?
O ceticismo vem do fato de freqüentemente a inflação sair do controle. Isso ocorre porque as pressões políticas são muito grandes. O Brasil ainda não exerceu o papel a que tem direito no mundo por causa da inflação.

O sr. patrocinou a criação do ?Consenso de Washington?. Hoje, o Brasil tem um presidente de esquerda e questiona-se essa receita econômica. O que o sr. pensa disso?
Infelizmente, não há substituto para uma política econômica disciplinada para os países manterem a prosperidade. Mas, politicamente é muito mais fácil gastar dinheiro, mantendo o orçamento equilibrado ou não. O resultado é que o Brasil quase sempre tem inflação muito alta, ainda hoje.

Nenhum sobrenome foi tão identificado com o que há de bom e de mau no capitalismo como o seu. Quais as vantagens e desvantagens de ser um Rockefeller?
Meu avô, meu pai, meus irmãos e eu tivemos vidas muito construtivas e demos ao nome características favoráveis, seja
por causa da fundação Rockefeller ou outras instituições que
criamos e que ajudaram a melhorar o bem-estar humano ao redor do mundo. Me sinto orgulhoso disso, mas também penso no lado econômico. Meu avô enfrentou tempos difíceis ao unificar a
indústria do petróleo, vital para a geração de energia, força motriz do mundo. Sinto-me muito orgulhoso por, tendo gerado muito dinheiro com o petróleo, usar os recursos para apoiar o desenvolvimento econômico do mundo.

E o lado negativo?
Penso que as vantagens são maiores do que as desvantagens. O único peso é ser um nome famoso e que as pessoas tendem a julgar você pelo nome em vez do que pelo que você representa. Mas não é um problema sério. Basta ver a reação ao livro. As pessoas gostam quando alguém explica o ponto de vista de nossa família.