Quando, no ambiente corporativo, demandam-me sobre como utilizar a literatura enquanto recurso para promover o desenvolvimento de líderes e suscitar competências e habilidades, costumo responder: dê-me um tema que eu te dou um clássico. E, efetivamente, não é à toa que os clássicos são clássicos. Neles estão contidos todos os grandes temas, todas as questões essenciais da existência humana, expressas de forma perene e universal, ainda que marcadas com suas especificidades históricas, linguísticas e culturais. Mês passado, nesta coluna, trouxe um dos maiores clássicos de Shakespeare, Hamlet, para falar sobre o processo de tomada de decisões e os elementos que nele atuam, numa perspectiva humanística e sempre atual. Seguindo na mesma toada, no artigo deste mês, continuando de braços dados com o Bardo de Stratford, quero propor a reflexão sobre outro tema muito recorrente e delicado no universo empresarial a partir de outra tragédia não menos famosa e igualmente provocativa: O Rei Lear.

Sou o que penso ou o que faço? A lição de Hamlet sobre a tomada de decisões

Na primeira cena desta peça, encontramos Lear, o velho rei da Bretanha, convocando toda sua corte para um grande anúncio: a sua “aposentadoria” e a consequente divisão do seu reino em três partes iguais, atribuídas a cada uma de suas três filhas – Goneril, Regana e Cordélia. Antes, porém, de oficializar a passagem de poder, Lear demanda de cada uma delas uma manifestação em forma de homenagem, a fim de ratificar o acerto de sua decisão e escolha. As duas filhas mais velhas, muito astutas, proferem lindos discursos, que ecoam como música nos ouvidos do rei. Já o discurso da caçula Cordélia, proferido com o coração e comprometido com a verdade (fazendo jus ao seu nome, que deriva do latim cordis), desagrada sobremaneira o vaidoso rei, que, de forma intempestiva, deserda-a, deixando-a fora da partilha.

Instado por seus mais fiéis e sensatos conselheiros, Lear não se deixa convencer e ainda os afasta todos, isolando-se cada vez mais na companhia dos falsos, lisonjeiros e interesseiros. E assim, com uma trama extremamente engenhosa e rica, Shakespeare vai nos oferecendo um retrato incomparável do processo de autossabotagem do líder dominado pela vaidade e orgulho, incapaz de absorver a crítica construtiva e que se torna vítima da sua própria estultice. E como é comum, nos meios corporativos, esse tipo de “líder” que, levado por suas paixões, acaba afastando todos aqueles que lhe são fiéis e lhe querem bem e traz para junto de si aqueles que apenas sabem bajular e que estão sempre prontos a lhe puxar o tapete.

Preocupado em livrar-se dos ônus do cargo com a intenção de manter os bônus, Lear é um exemplo muito expressivo da insensatez que pode acometer todo aquele imbuído de poder. Incapaz de avaliar a si mesmo, Lear mostra incapacidade ainda maior de avaliar sua sucessão e escolher seus sucessores. Quando Goneril comenta com Regana sobre o escândalo cometido pelo pai, esta pondera acertadamente: “É um mal próprio da idade; aliás, nunca teve um maior conhecimento de si próprio”.

Mais adiante, já desprezado e maltratado pelas filhas mais velhas (como era de se esperar) e profundamente arrependido pelo que havia feito com a filha mais nova, estando à beira da loucura, Lear se queixa amargamente ao seu antigo bobo da corte – o único amigo que lhe restou em seu abandono. E este, com aquela sabedoria e liberdade que só os “bobos” costumam ter, “manda-lhe a real”: “O problema, titio, é que você ficou velho antes de ficar sábio”. Num mundo em que se valoriza a aquisição de tantas coisas antes da “aposentadoria”, a lição d’O Rei Lear não deixa de ser extremamente útil. Seria a sabedoria uma qualidade que valorizamos mais do que qualquer outra? Não tardemos na resposta; o tempo urge.