A criançada, solta no campo, corre descalça sobre a terra vermelha. São saudáveis e têm uma qualidade de vida que qualquer um da cidade grande invejaria. Empinam pipa, sobem em árvores e têm fartura nos pratos. Esses garotos que poderiam ser confundidos com filhos de fazendeiros são a imagem que poucos conhecem das pessoas que fazem parte do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). Um dia seus pais já empunharam bandeiras vermelhas e facões, perambularam pelas estradas e derrubaram cercas de fazendas atrás de um pedaço de terra para plantar. Muitos dos que já realizaram esse sonho e deixaram para trás os tempos de acampamento ? quando o teto era apenas um barraco de plástico preto ? mostram na prática, independentemente do discurso político, que é possível produzir e até exportar. No Sul do País, já há casos de ex-sem-terra que estão abastecendo mercados como o suíço, o belga e o japonês com grãos, chás e subprodutos da mandioca. O Brasil tem hoje 500 mil famílias assentadas. Nem o próprio Incra (órgão do governo que cuida de assuntos agrários) sabe quantos brasileiros estão na fila à espera de uma área para produzir.

O Paraná, onde o MST nasceu na década de 70, é o Estado com maior índice de produtividade de assentamentos. Lá estão 12 mil famílias em 260 projetos. Uma das iniciativas mais bem-sucedidas é a da Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória (Copavi), na cidade de Paranacity, norte do Estado. As 22 famílias não têm título de propriedade da terra, mas sim a Copavi. Elas vivem no chamado assentamento coletivo, onde a área de 232 hectares pertence a todos. O grupo conseguiu, desde o período de acampamento até hoje, juntar um patrimônio que já chega a R$ 1 milhão. Homens e mulheres se dedicam a atividades como a horta orgânica, suinocultura, gado de leite, frango de corte, cultivo de frutas e produção de pães, doces e cachaça. De lá saem todos os meses, em média, 6 mil pés de alface, 4 toneladas de frango, 2,7 toneladas de carne de porco e 1 tonelada de rapadura. Cerca de 20% da produção vai para o consumo interno e o restante é vendido. Tudo isso é conseguido com muito suor e deve ganhar, a partir do mês que vem, uma ajuda da tecnologia. Em setembro começa a funcionar uma unidade de produção de frutas desidratadas que utiliza energia solar. O projeto custou R$ 70 mil e foi desenvolvido por ex-estudantes da Universidade da Catalunha, na Espanha. No mês passado a idéia foi premiada pela Associação dos Engenheiros Industriais da Catalunha e já há planos para exportar parte da produção.

A alta produtividade e os planos de ver crescer a receita de assentamentos como o de Paranacity parecem não combinar com um dos temas que o socialista MST mais repele, o capitalismo. ?Lutamos por mudanças, mas sabemos que estamos dentro de um sistema capitalista?, admite Antônio Natalino Gonçalves, presidente da cooperativa. ?Ou você acha que dentro de casa não tem chocolate ou bolacha para os meus filhos? Só que o capital tem de ser uma condição para a produção, não uma forma de exploração.? Entre os assentados, há um agrônomo recém-formado que repassa aos colegas o que aprendeu na faculdade. Esta é uma das maneiras que o MST vem encontrando, segundo Gonçalves, de formar seus próprios técnicos e diminuir a influência do Incra nos negócios. Graças ao auxílio de agrônomos foi possível, por exemplo, descobrir um insumo largamente utilizado na cozinha japonesa: a fécula da mandioca. Hoje o Japão é um dos maiores mercados consumidores do subproduto extraído em Paranacity.

Além dos assuntos econômicos, também faz parte da agenda dos ex-sem-terra a questão ambiental. Mais antenados que muitos fazendeiros, os agricultores sabem que dependem da terra e por isso devem dedicá-la cuidados. Tanto que muitos projetos, como o Missões, em Francisco Beltrão, reservam boa parte da área plantada para a agricultura orgânica. Além da horta, o local também produz soja orgânica. Na mesma região, o assentamento Nova União fez um acordo com uma empresa de beneficiamento para exportar soja orgânica para a Suíça e a Bélgica. O produto tem muito apelo nos países da União Européia e começa a ganhar espaço nos pratos dos brasileiros. Em Cascavel, região sudoeste do Paraná, é a pecuária que começa a se destacar. Valdemar Fernandes, um ex-caminhoneiro, e a mulher Leonilse trabalham com gado leiteiro no assentamento Santa Terezinha. As dez vacas holandesas da família produzem cerca de 2 mil litros de leite por mês. Entre os clientes de Fernandes estão algumas cooperativas da região. No mesmo assentamento mora a família de Ademar Loeder. Dono de 12 hectares de terra, ele se especializou na venda de suínos, leite e a produção de grãos. Chega a vender carne para a Argentina, além de abastecer o comércio local. Quando os negócios não vão bem, Loeder se junta aos vizinhos para ganhar volume de produção e conseguir preços melhores. ?A solidariedade é o ponto forte no Santa Terezinha?, diz. E de todo o Movimento.