Na manhã da terça-feira 16, o novo diretor-geral da Polícia Federal, Luiz Fernando Corrêa, mostrou a que veio. Numa operação que mobilizou 650 policiais e cumpriu 93 mandados de busca e apreensão, a PF pela primeira vez atingiu uma multinacional. E não uma qualquer. Naquela manhã, foram presas 41 pessoas suspeitas de sonegação fiscal, incluindo o presidente da Cisco Systems no Brasil, Pedro Ripper.

Além dele, todos os diretores foram detidos, o que deixou a empresa sem comando no Brasil. Fundada há 23 anos, a Cisco simboliza a era de ouro da internet. Produzindo roteadores, que fazem a conexão entre computadores, ela alcançou um valor de mercado de US$ 197 bilhões, com vendas anuais de US$ 38 bilhões ? o Brasil representa cerca de 5% dos seus negócios. Até então, a empresa criada por engenheiros da Universidade de Stanford, na Califórnia, sempre foi exemplo de inovação. Seu presidente, John Chambers, é tido como um dos heróis do capitalismo americano e a empresa registra mais de mil pedidos de patentes por ano. Depois da ação da PF, a Cisco parou nas páginas policiais e a notícia correu o mundo. Saiu em jornais como o Financial Times e o The Wall Street Journal. Atordoada com o golpe, a filial brasileira parecia incapaz de esboçar reação. No dia seguinte, os funcionários foram dispensados do trabalho e aguardava- se a chegada de um executivo dos Estados Unidos para tomar pé da situação.

Em resumo, a Cisco é acusada de comandar um esquema de sonegação por meio do subfaturamento de importações. Seus equipamentos, que dominam mais da metade do mercado brasileiro, têm componentes de hardware e de software ? os primeiros são tributados em 10%, enquanto os programas são praticamente isentos. De acordo com a PF, uma máquina de US$ 10 mil era importada como se 90% dela fosse software ? e não hardware. Assim, o imposto de US$ 1 mil virava US$ 100, nas importações conduzidas pela empresa Mude, cujo presidente, Moacir Sampaio, também foi preso. Segundo as investigações, a empresa importou US$ 500 milhões nos últimos cinco anos. O volume das fraudes, de acordo com os técnicos da Receita Federal que acompanharam o caso, poderia chegar a R$ 1,5 bilhão, incluindo multas por atrasos. ?A Cisco, naturalmente, tentará dizer que não tem nada a ver com isso?, disse à DINHEIRO Gerson Schaan, chefe da Inteligência da Receita. ?Mas nós temos um vasto material que comprova que a empresa americana tinha conhecimento íntimo do esquema no Brasil, que, de tão bem-sucedido, estava para ser levado para outros países.?

SUSPEITA R$ 1,5 BILHÃO seria o valor sonegado, incluindo multas, de acordo com a Receita

De acordo com os investigadores, o modus operandi das importações foi idealizado por Carlos Roberto Carnevalli, ex-presidente da Cisco no Brasil, que também está detido. Na entrevista coletiva concedida após as prisões, a delegada federal Érika Nogueira disse que a operação, batizada de Persona, poderá ter repercussões criminais até nos Estados Unidos. ?É inevitável chegar à matriz?, disse ela. Alguns delegados falaram em investigar clientes, o que seria curioso, pois a própria Polícia Federal utiliza roteadores da Cisco. No site da empresa no Brasil, numa área destinada a casos de sucesso, havia um depoimento do ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, retirado do ar na quarta-feira 17. Armínio contava que implantou um sistema da Cisco de voz sobre IP ? telefonia pela internet ? na Gávea Investimentos e que, com isso, obteve forte redução de custos.

Diante desse caso, é preciso cautela. Juristas, como Ives Gandra Martins, dizem que as prisões são ilegais. Isso porque, em casos de sonegação, a lei estipula um ritual a ser seguido. Primeiro, deve vir a autuação fiscal, seguida do processo administrativo. Num terceiro estágio, a ação penal.

?Depois de tudo isso, o contribuinte ainda pode pagar o imposto devido com desconto de 50% da multa, o que extingue a ação penal?, diz Gandra.

Além disso, ministros do Supremo Tribunal Federal têm criticado abertamente o que chamam de ?banalização? da prisão preventiva no Brasil. E, no mesmo dia em que os executivos da Cisco foram presos, o presidente Lula fez uma crítica a uma ação recente da Polícia Federal, que derrubou, sem provas, o ministro Silas Rondeau, de Minas e Energia. ?Temo que os que acusaram o Silas é que vão ter que prestar uma boa explicação?, disse Lula.

Seja como for, a ação representa um golpe na imagem da Cisco, que fornece equipamentos para praticamente todos os ministérios e várias empresas públicas, como a Infraero e Correios. Além disso, há uma dificuldade a mais, que é a falta de poder de decisão no Brasil. ?Ninguém sabia o que fazer?, disse à DINHEIRO um funcionário, que preferiu não se identificar. Um dia após a prisão, nem os advogados estavam definidos. Estão todos à espera do interventor que virá dos EUA. Enquanto o quadro continuar turbulento, a chinesa Huawei, principal concorrente da Cisco no Brasil, poderá ganhar terreno.