“A cobra é um animal ingrato”, define Otávio Marques, pesquisador do Instituto Butantã. Ele se refere não à peçonha, mas à dificuldade em encontrar as serpentes e fotografá-las. Nada que o tenha desanimado. Após anos de pesquisa atrás das rastejantes, Marques e outros dois cientistas lançam nesta quinta-feira, 8, um guia de serpentes da Mata Atlântica, material que serve tanto como referência para pesquisadores como almanaque para quem ainda nem aprendeu a ler.

“É um livro para preguiçosos”, diz, bem-humorado, o biólogo e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) André Eterovic, outro autor. Fotos de cobras com ícones sobre os principais hábitos dos animais – como reprodução, veneno e alimentação – tornam a obra fácil de ler. Mas, se há preguiça no leitor, o mesmo não se pode dizer dos autores. Foram anos de pesquisas de campo – e até mordidas de serpente – para chegar à publicação.

O trabalho começou com a pesquisa de doutorado de Marques, na Estação Ecológica Jureia-Itatins, em São Paulo. Em 2001, o pesquisador publicou o “Serpentes da Mata Atlântica: guia ilustrado para a Serra do Mar”, mas a obra estava restrita a uma área pequena do bioma. Agora, há imagens e informações sobre 142 espécies, espalhadas de sul a norte do País. Uma das fotos, da cobra-verde Philodryas laticeps, foi incluída aos 45 do segundo tempo.

“Só se conhecia espécimes mortos e um exemplar vivo foi coletado por um colega no Espírito Santo e enviado ao Butantã, no momento em que o guia estava sendo finalizado”, conta Marques. Aliás, para cobrir território tão grande, colaborações entre cientistas foram frequentes. Segundo ele, 45% das espécies catalogadas são endêmicas (restritas ao uma região), o que torna a Mata Atlântica um dos biomas mais especiais para estudar esses bichos.

Uma das serpentes mais ameaçadas de extinção também aparece no livro: a jararaca-de-murici (Bothrops muriciensis) só dá as caras em uma pequena área de mata em Alagoas. Sem contato com outros exemplares, corre o risco de desaparecer. A fragmentação do bioma, dizem os autores, faz soar o alerta para a continuidade das espécies.

“Na Mata Atlântica, há uma quantidade grande de espécies (de serpentes) arborícolas. A cobra não depende só da sombra da floresta, mas da estrutura. Essa riqueza de espécies arborícolas sofre impacto com a destruição”, diz Marques. Só 12% da floresta original está de pé.

Hoje, sabe-se que em algumas ilhas, onde a oferta de alimentos é baixa, as cobras são quase anãs. “Na Queimada Grande (a famosa Ilha das Cobras, no litoral de São Paulo), a jararaca ilhoa passou a comer passarinho porque é uma ilha que não tem mais rato”, exemplifica Marques. Para Eterovic, é possível que espécies que já figuraram em guias ilustrados nem existam mais.

Se o processo de mutação genética para a formação de novas espécies na natureza é lento, a extinção, por outro lado, pode ocorrer em um piscar de olhos. “Às vezes não é necessário nem matar o último exemplar. Há espécies que chamamos de ‘zumbis’, um número tão pequeno de exemplares que nem se encontram para a reprodução”, diz Eterovic.

Para os pesquisadores, além de um guia para acadêmicos, a obra ajuda na disseminação do gosto pela Biologia entre quem ainda nem sabe o que isso significa. Eles têm relatos de crianças que cresceram com a primeira versão do livro e se tornaram herpetólogos. “As cobras causam repulsa e nojo. Levando o conhecimento de forma leve, queremos quebrar essa barreira. Se isso acontecer com as cobras, as pessoas podem passar a ter respeito com toda a biodiversidade”, diz Marques.