O trânsito não existe. Os edifícios são projetados para aproveitar os recursos naturais a fim de otimizar a utilização de energia. O lixo é sugado por meio de tubos subterrâneos e uma sala de comando controla absolutamente cada movimento de Songdo, cidade inteligente que está sendo construída na Coreia do Sul, a 56 quilômetros de Seul, a capital. Com capacidade para abrigar 65 mil moradores, o lugar foi projetado para ser um centro de negócios global e tem previsão para estar finalizada no ano que vem. Custou US$ 35 bilhões, financiados por meio de uma parceria entre o governo sul-coreano e grandes empresas americanas. As Smart Cities, ou cidades inteligentes, têm como premissa o uso das tecnologias para melhorar a qualidade de vida. E gerar dinheiro.

Embora não existam métricas consagradas que mostrem uma relação direta entre cidade inteligente e atração de investimentos ou geração de riqueza, especialistas afirmam que esse vínculo é imediato. Empresas e trabalhadores qualificados tendem a buscar cidades assim. E isso pode ser medido por um estudo da consultoria Frost & Sullivan, que prevê um mercado de US$ 2,4 trilhões em 2025, trazendo junto segmentos como o de Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês), a tecnologia que permite a comunicação entre objetos, sejam postes de luz, carros ou câmeras de monitoramento. Apenas em IoT o volume será de US$ 330 bilhões em 2025 – mais de quatro vezes os US$ 79,3 bilhões movimentados em 2018, de acordo com a consultoria americana Zion.

Hoje, 55% da população mundial, ou 4,2 bilhões de pessoas, se espremem em centros urbanos. Para além do objetivo de otimizar a convivência entre os cidadãos e o meio ambiente, essas iniciativas são também grandes laboratórios para as companhias testarem seus produtos. Não à toa, gigantes como Cisco, IBM, Microsoft e Siemens implementam as suas soluções nos principais centros urbanos do mundo. A Cisco testa uma plataforma de serviço de nuvem que conecta sensores de tráfego e estacionamentos em tempo real em dezenas de capitais, como Copenhague, Nova York e Paris. Nova York, acredite, foi considerada a cidade mais inteligente do mundo em 2018, de acordo com um ranking da Iese, a escola de negócios da Universidade de Navarra (Espanha).

Sala de comando da cidade inteligente Songdo, na Coreia do Sul: sem lixo nem trânsito (Crédito:Philip Reynaers / Photonews via Getty Images)

O levantamento tem quatro eixos: Atividades Inovadoras, Conectividade Territorial, Ecossistemas Sustentáveis e Equidade entre Cidadãos. A partir deles, são avaliados 83 indicadores dentro de nove segmentos (Capital Humano, Coesão Social, Economia, Governança, Meio Ambiente, Mobilidade e Transporte, Planejamento Urbano, Projeção Internacional e Tecnologia). Por esses critérios, São Paulo está em 116º lugar. O Rio de Janeiro, no 126º. A seguir vêm Curitiba (135º), Brasília (138º), Salvador (147º) e Belo Horizonte (151º). Mas as métricas ainda são subjetivas. O ranking da Iese reflete dados que vão de certificações de sustentabilidade a quantidade de ataques terroristas, passando pelo número de lojas da Apple. “O estabelecimento dessa métrica é uma dificuldade no mundo inteiro”, diz Guto Ferreira, presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI). São Paulo é a mais inteligente por ser a mais rica do País ou por oferecer a seus moradores as melhores soluções urbanas?

A consultoria Urban Systems, que leva em conta 70 indicadores (em categorias como Meio Ambiente, Mobilidade e Urbanismo), tem outra resposta. Ela considerou Curitiba a cidade mais inteligente e conectada do País no ano passado. A capital paranaense é vista como exemplo especialmente no campo da mobilidade, por priorizar e incentivar, desde os anos 80, o uso do transporte público. Apesar de boas iniciativas, Ferreira avalia que, na prática, nenhuma cidade pode ser considerada inteligente no Brasil pela falta de infraestrutura. “A conectividade via internet é um dos pontos essenciais para a implantação das soluções”, diz. “Não temos isso. Falta sinal de internet até em alguns bairros de São Paulo”.

Mesmo sem um grande projeto, o Brasil tem boas iniciativas nesse campo. Uma das primeiras foi a implementação de um centro de gerenciamento de informações públicas da cidade do Rio de Janeiro, em 2011, fruto de uma parceria entre a IBM e a prefeitura. O sistema foi desenhado para conectar informações de diversos órgãos públicos do município para melhorar a capacidade de ação da prefeitura em ocorrências como enchentes e deslizamentos. Em São Paulo, a prefeitura disponibiliza informações sobre a posição dos ônibus e o tempo para chegar ao destino. Embora promissoras, as ações não avançaram. No máximo, os dados foram trabalhados por startups em aplicativos para auxiliar o cidadão no deslocamento. Outras inicativas simples poderiam mudar a relação de cada pessoa com a cidade. O setor da saúde é um exemplo.“Não há informações públicas da fila de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS)”, diz Fabio Kon, professor de ciência da computação do Instituto de Matemática e Estatística da USP.

Para Francisco Albuquerque, sócio-cofundador da Arco Hub de Inovação, o desafio hoje é fazer com que as pequenas soluções existentes ganhem escala nacional e possam ser replicadas em diversos setores. “Existe uma infinidade de possibilidades que podem ser olhadas de maneira sistêmica”, diz. “É preciso que os governos criem uma cultura para repensar a dinâmica dos serviços públicos e, assim, fomentar projetos.” O Governo Federal prepara, ainda sem prazo definido, a Carta Brasileira de Cidades Inteligentes, que vai mensurar os parâmetros domésticos para classificar se um município será considerado inteligente. A iniciativa faz parte do plano de modernização tecnológica urbana, que prevê também um programa para selecionar empreendimentos privados dispostos a tomar crédito para financiar as ações de desenvolvimento urbano. “Mas ainda estamos muito distantes disso”, diz Kon, da USP. Ele afirma que esse processo se inicia com a disponibilização de dados pelas prefeituras: “O que está acontecendo de maneira muito lenta”, afirma.

POLÍTICAS PÚBLICAS O primeiro passo para se posicionar como cidade inteligente está na coleta e análise de todos os níveis de dados e indicadores públicos de cada cidade. A gestão dessas informações aliada a inovações tecnológicas é fundamental ao processo. Em essência é uma inversão no modo como as cidades são administradas. Em vez do atual decide-se e depois mede-se, entram os dados como decisores das políticas. Um exemplo positivo nesse sentido vem do interior paulista, na pequena Monteiro Lobato, de 4.608 habitantes, candidata a ser a primeira cidade inteligente do Brasil. “Para começar esse projeto, colhemos manualmente dados da população e dos serviços públicos para entender as demandas dos cidadãos”, diz a prefeita Daniela de Cássia Brito (PSB).

Com as informações em mãos, a gestora apresentou ao governo do estado um plano no qual prevê a utilização da tecnologia para trabalhar essas informações e colher outras para melhorar a vida dos munícipes. O projeto recebeu apoio de R$ 1,5 milhão do governo de São Paulo, uma pequena parte do orçamento. “Agora estamos em busca de parceiros da iniciativa privada, pois o projeto custa cerca de R$ 30 milhões”, diz. A EDP é uma das apoiadoras, que financia a nova iluminação local, toda feita com lâmpadas de led, mais econômicas. Para incentivar a produção desse tipo de equipamento pela indústria nacional, o Inmetro começou neste ano a testar alguns produtos para credenciá-los. De acordo com Ferreira, da ABDI, a certificação é essencial, pois permite que órgãos de fomento, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), financiem as iniciativas.


Uso indevido de dados do cidadão pode ser um efeito colateral

Os sensores e todo o aparato tecnológico que está sendo implementado nas cidades é discutido principalmente sob o ponto de vista da melhora na mobilidade e do uso consciente dos recursos naturais. Especialistas apontam, entretanto, que é necessário olhar essas mudanças sob o ponto de vista social. “A inteligência artificial é romantizada”, diz Gabriel Poli de Figueiredo, urbanista que estuda o discurso das cidades inteligentes. “Colocar sensores na cidade pode ser interessante. Mas não aborda necessariamente os graves problemas sociais que enfrentamos”, afirma. “É possível que, sem um processo de discussão, o ganho de eficiência com as novas tecnologias apenas reforce o modus operandi e agrave a violência policial contra jovens negros ou moradores da periferia”, diz.

Outra questão a ser pensada é que o conceito da cidade inteligente é baseado na coleta de dados do movimento urbano e, por consequência, da população. Isso significa que as imagens das câmeras instaladas ao longo das vias e as informações que a geladeira vai enviar ao mercado para que as compras sejam feitar de maneira automática devem desnudar ainda mais a intimidade dos cidadãos para empresas e governos. “Isso pode ser contornado com um arranjo institucional, que proteja os dados coletados”, afirma Figueiredo. “Mas se essas informações valiosas ficarem só na mão das empresas, teremos de lidar com um sério conflito de interesses”, diz.