Foram quase 11 meses às cegas. Até que uma luz redentora surgiu no horizonte. Em 26 de fevereiro de 2020, o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, confirmou o primeiro caso de coronavírus no Brasil: um homem de 61 anos que havia viajado à Itália, então um dos países mais castigados pela Covid-19. Semanas depois, dia 11 de março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que a doença se tornara uma pandemia. Havia apenas 52 casos oficiais no País. Como o tratamento era desconhecido, a única medida possível para evitar o contágio por um vírus de disseminação agressiva e potencialmente letal era o isolamento social. Salvar vidas exigiu fechar tudo: escolas, shopping centers, fábricas, restaurantes, cinemas, parques.

O reflexo na economia foi imediato, com a falência de muitos negócios, demissão em massa e a expectativa de queda generalizada do PIB global. No caso brasileiro, estimava-se um recuo de 11%. Todas as esperanças residiam na descoberta de uma vacina.

O dia 17 de janeiro de 2021, um domingo, será lembrado como a data em que a primeira dose da Coronavac foi aplicada no Brasil. A vacina importada da China por meio de um acordo de cooperação firmado pelo laboratócio Sinovac com o Instituto Butantan, ligado ao governo de São Paulo, recebeu liberação emergencial da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que recomendou por unanimidade a distribuição do imunizante em todo o território nacional. Pela primeira vez em quase um ano de pandemia, a ciência vencia uma batalha contra a ignorância, o despreparo e o negacionismo que caracterizam o governo liderado por Jair Bolsonaro (sem partido).

Foi uma vitória difícil e que jamais irá reparar as mais de 212 mil mortes em decorrência da Covid-19 no Brasil. Apesar de tardio, o início da vacinação põe fim ao gravíssimo impasse gerado pela politização da crise sanitária no Brasil — e traz a crença de que ainda em 2021 será possível recuperar um pouco da normalidade perdida. Se não significa a cura imediata para todos os problemas causados pelo coronavírus, a vacina certamente salvará vidas. E a recuperação da economia será uma consequência disso.

INÍCIO Em ato simbólico em frente ao Cristo Redentor, técnica de enfermagem e moradora de abrigo recebem as primeiras doses da Coronavac no Rio. (Crédito:Ricardo Moraes)

Mas até mesmo a excelente notícia do início da vacinação no País foi ameaçada pela incompetência do governo federal, que até agora não divulgou nenhuma campanha de conscientização e nem apresentou um calendário oficial. O ministro da Saúde Eduardo Pazuello afirmou, de forma irresponsável, que a vacinação começaria no “dia D, na hora H”. O ministério também não esclareceu quem tem direito a ser imunizado e quem não poderá ser vacinado por questões de saúde. No Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, apresentado em dezembro pelo ministério ao Supremo Tribunal Federal (STF), houve apenas uma divisão em grupos para definir a ordem de preferência. O prioritário, que já começou a receber o imunizante, é formado pelos trabalhadores de saúde, seguidos por pessoas com 80 anos ou mais. Depois entram na fila quem tem de 75 a 79 anos, e assim sucessivamente: 70 a 74 anos, 65 a 69, e 60 a 64 anos. São 54 milhões de pessoas.

Em um país de dimensão e contingente populacional continentais, todo processo de imunização em massa é complexo. Ao longo dos anos, o Brasil só tornou esse tipo de operação possível devido à centralização do Sistema Único de Saúde (SUS). Justamente o SUS, que vinha sendo ameaçado de desmonte pela gestão Bolsonaro. Segundo a epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde durante a campanha de vacinação contra H1N1, é por meio do SUS que se pode dar celeridade ao processo de imunização de forma segura. “Compramos, na época, vacinas de três laboratórios diferentes, entendendo que o envio para cada uma das regiões teria especificidades de armazenagem, logística e custo”, disse.

Tal procedimento está longe de ser o modelo para a distribuição de imunizantes para a Covid-19. Embora a Anvisa tenha liberado também a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford em conjunto com a farmacêutica AstraZeneca, o Brasil não conseguiu trazer 2 milhões de doses que havia acordado com a Índia. Assim, a única vacina disponível é a Coronavac, que só chegou ao Brasil por insistência do governador de São Paulo, João Doria. Isso porque, em outubro, o presidente Bolsonaro afirmou ter cancelado um acordo de compra de 43 milhões de doses da vacina chinesa assinado pelo ministro Pazuello. Era um blefe, que só retardou ainda mais o início da vacinação no País.

“Sem vacina, a economia fica no purgatório: os empresários e consumidores sabem que existe o paraíso, mas não conseguem entrar” Tony Volpon estrategista-chefe da WHG.

No domingo (17), a primeira dose de Coronavac foi recebida pela enfermeira Mônica Calazans, negra de 54 anos. Doria estava presente e celebrou seu feito. “Hoje foi uma vitória importante, a vitória da vida. Que sirva de lição para os negacionistas, para os que não têm amor no coração, para os que desprezam a vida, que se distanciam de um país que sofre com a morte”, afirmou. Doria está corretíssimo. Apesar de a Coronavac já estar sendo aplicada, o Brasil ainda tem um longo caminho para que a vacina chegue a quem precisa. Responsável no SUS pelas compras das vacinas do vírus H1N1 para a Região Sul do País em 2009, Sandra Ellen Lavoratti afimou à DINHEIRO que o processo confuso apresentado por Bolsonaro e Pazuello resultará em grande morosidade nas aplicações. “Ainda que haja vontade dos prefeitos iniciarem suas campanhas, a falta de um cronograma claro, a incerteza sobre qual vacina tomar e quais são os grupos prioritários causam imensa incerteza no andamento da vacinação no País”, disse.

INSUMOS Outro ponto que ainda coloca em dúvida o andamento de um cronograma eficaz de vacinação é a produção nacional. Mesmo que os laboratórios capacitados (Fiocruz e Instituto Butantan) consigam fabricar o imunizante em larga escala, a falta de alguns insumos, principalmente da China, pode retardar todo o processo. O Brasil depende do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), que ainda não produz. Diretor da Anvisa entre 2013 e 2016, Ivo Bucaresky afirmou que a dificuldade já era conhecida. “Temos um problema estrutural, porque produzimos muito pouco dos insumos que a indústria farmacêutica precisa”, disse. Segundo números da agência, 95% dos insumos usados para produção de remédios no Brasil vêm do exterior. A maior parte, da Índia (37%), que trava a liberação de doses da vacina de Oxford comprada pela Fiocruz, e da China (35%), que produz a matéria-prima das duas vacinas aprovadas no domingo (17).

Enquanto o Brasil tenta solucionar o impasse diplomático com a Índia para trazer as doses da vacina produzida pela AztraZeneca, a farmacêutica brasileira União Química, em parceria com o Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF, sigla em inglês), acelera os processos para produção da vacina Sputnik V no País. Na semana passada, o presidente da empresa brasileira, Fernando de Castro Marques, esteve em Moscou com o CEO do RDIF, Kiril Dmitriev, para finalizar acordo de fornecimento de 10 milhões de doses da vacina russa, com previsão de entrega no primeiro trimestre deste ano. “Nossos parceiros da União Química foram um dos primeiros do mundo a se interessar pela vacina. Estamos prontos para uma cooperação em larga escala no abastecimento”, disse Dmitriev. O preço da Sptunik V deverá ser inferior a US$ 10.

O imunizante russo teve uso emergencial autorizado em países como Argentina, Bolívia, Argélia, Sérvia e Hungria. Globalmente, mais de 1,5 milhão de pessoas já foram vacinadas com a Sputnik V, incluindo brasileiros que trabalham na Embaixada em Moscou. Por aqui, contudo, a liberação está emperrada. No sábado (16), a Anvisa devolveu os documentos protocolados pea União Química na véspera, alegando que não havia requisitos mínimos para submissão e análise. A direção do RIFD garantiu que a documentação suplementar seria enviada até o dia 22. O ministro do STF Ricardo Lewandowski determinou, na quarta-feira (20), que a agência reguladora prestasse informações, em 72 horas, sobre a análise do pedido.

“VITÓRIA DA VIDA” Dimas Covas, do Instituto Butantan, e o governador de São Paulo João Doria, que costurou o acordo com a vacina chinesa. Decisão da Anvisa tira o Brasil do atraso. (Crédito:Paulo Guereta)

Também na quarta-feira (20) a farmacëutica Pfizer anunciou que irá vacinar 1,4 mil pessoas em São Paulo e Salvador que participaram da fase 3 do estudo clínico no Brasil e que já receberam placebo. Os testes, entre julho e novembro do ano passado, envolveram 2,9 mil voluntários. Na semana passada, o ministro Pazuello, criticou a direção do laboratório pelas cláusulas exigidas para o fornecimento da vacina ao Brasil. A Pfizer rebateu o governo e afirmou que já encaminhou três propostas para aquisições de 70 milhões de doses, a primeira delas em agosto, e que aguarda posicionamento do governo para avanço das tratativas.

TRANSPORTE Tão importante quanto ter uma vacina é garantir que as doses cheguem aos braços dos brasileiros. A logística é complexa: envolve armazenamento, acondicionamento na temperatura correta e envio aos 5.570 municípios brasileiros. Impactada diretamente pela crise a partir da pandemia da Covid-19, a companhia aérea Azul realizou, sem custo para o governo federal e os estaduais, o transporte de 2,7 milhões de doses da Coronavac. Em dois dias, a partir da segunda-feira (18), foram usadas 10 aeronaves para 13 destinos. O CEO da Azul, John Rodgerson, disse que a companhia deve continuar fazendo o transporte de doses e de insumos para produção de vacina por, pelo menos, seis meses. Pelas suas contas, o valor da operação chegará a R$ 10 milhões. “Neste momento, ninguém está pensando em lucro. Estamos pensando em salvar vidas e ajudar o Brasil, porque isso também será bom para o nosso negócio”, disse. “Estamos no começo do fim.”

VOO LIVRE Avião da Azul usado no transporte de vacinas. A empresa colocou parte da frota à disposição do governo sem cobrar pelo serviço, que deverá custar R$ 10 milhões. Ações da companhia na Bolsa tiveram alta. (Crédito:Divulgação)

Um Airbus A-330neo da companhia estava preparado para voar do Recife a Mumbai, na Índia, e trazer as doses da vacina de Oxford. Não partiu por causa da falta de diplomacia brasileira em conseguir assegurar o repasse dos lotes, que viriam do instituto indiano Serum. O governo indiano se incomodou com o alarde feito pela administração Jair Bolsonaro e decidiu adiar a entrega, priorizando países vizinhos. Até a quinta-feira (21), havia a expectativa de embarque nos próximos dias. O CEO da Azul afirmou que fará o embarque assim que a questão for resolvida. “Fomos à China oito vezes nos últimos seis meses para buscar materiais. Seja China, Rússia, Índia, iremos onde for necessário.” O início do processo de vacinação no BNrasil fez com as ações da Azul registrassem alta. Na segunda-feira (18), o papel da companhia na B3 fechou a R$ 38,10, aumento de 1,82% sobre o pregão de sexta-feira (15). “Subiram, mas ainda temos de voltar ao patamar antes da Covid, porque a empresa não mudou”, disse Rodgerson. “O que estou torcendo é para que a partir de julho haja um grande número de pessoas vacinas, com hospitais menos cheios. Isso vai ajudar a economia a andar”, afirmou.

Leonardo Rodrigues

“As condições financeiras atuais estão ainda em terreno estimulativo, mas menos do que no fim de 2020. Mostram-se compatíveis com uma expansão do PIB mais próxima a 1,0 % este ano” Carlos Kawall Diretor do Asa Investments.

Assim como o CEO da companhia aérea, eespecialistas do mercado financeiro esperam que a economia volte a andar com a vacinação. Estrategista-chefe da Wealth High Governance (WHG) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central (BC), Tony Volpon afirmou à DINHEIRO que tanto no Brasil quando no exterior, “qualquer horizonte de recuperação econômica plena e efetiva é coincidente com o horizonte do fim da pandemia”. Por “fim da pandemia” ele entende não a extinção da doença, mas seu controle a um ponto em que a necessidade de medidas de contenção social esteja superada. “Sem vacina, a economia fica no purgatório: os empresários e consumidores sabem que existe o paraíso, mas não conseguem entrar”, afirmou. Embora o Brasil esteja atrasado em relação a vários outros países quanto ao cronograma de vacinação, ele não vê riscos de cairmos no inferno. “Os prognósticos para a economia brasileira são de uma dinâmica de recuperação”, disse.

UM PIB “NORMAL” Diretor do Asa Investments, ex-secretário do Tesouro Nacional e ex-diretor do BNDES e da B3, Carlos Kawall afirmou que o fato de o Brasil ter começado tardiamente o processo de vacinação traz impactos negativos para o ritmo da retomada econômica. “O nosso atraso na vacinação está afetando a incerteza fiscal”, disse, citando especulações quanto à reedição do decreto de calamidade e defesa da volta do auxílio emergencial. Isso elevaria a cotação do dólar e a estrutura a termo da taxa de juros para cima, apertando as condições financeiras na margem. Para ele, no cenário mais favorável, a imunização de grupos de risco será concluída apenas em meados deste ano, levando a uma reabertura total da economia apenas no terceiro trimestre. “As condições financeiras atuais estão ainda em terreno estimulativo, mas menos do que no fim de 2020. Mostram-se compatíveis com uma expansão do PIB mais próxima a 1,0 % este ano”. É bem menos do que o Brasil precisa para recuperar o tombo causado pela Covid-19 no ano passado. Ainda assim, seria algo próximo do crescimento observado em anos “normais”, como os do governo de Michel Temer. De qualquer forma, é uma injeção de ânimo na economia.