Medida Provisória 1.055, ou MP da Crise Hídrica, surgiu no Congresso Nacional como uma investida do Executivo para “ajudar” o sistema energético e hídrico brasileiro em tempos de baixo nível nos reservatórios e aumento do custo operacional. Mas a benesse para por aí. Pontos polêmicos da privatização da Eletrobrás foram transferidos pelos deputados para a MP, e a Câmara pariu um texto que elevará o custo da energia em R$ 46,5 bilhões, fará os preços de produtos e serviços saltarem ao menos 10% e que, ao incentivar a energia suja por mais oito anos, segue na contramão do mundo.

Um ditado brasiliense creditado a Ulysses Guimarães define que “jabuti não sobe em árvore, se está lá foi enchente, ou mão de gente”. E ao todo são cinco deles. 1) Prorroga o uso de recursos da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) no subsídio para termelétricas a carvão, a mais poluente e cara de todas, de 2027 para 2035. 2) Permite que a Aneel agregue às tarifas de transmissão os custos relacionados a obra de gasodutos para interligar as usinas cuja construção foi determinada na capitalização da Eletrobras. 3) Com relação às Pequenas Centrais Hidrelétricas, ou PCHs, subiu de 20 para 25 anos o tempo de contratos dos Leilões A-5 e A-6. 4) Por fim, os investimentos em fornecimento de energia a propriedades rurais foi turbinado com mais casas abarcadas. Nenhum desses pontos ajuda diretamente na atual crise hídrica, mas atende interesses de bancadas que defendem uma agenda específica, de lobistas. E um movimento clássico no xadrez do Congresso é inserir esses jabutis em textos que terão menos atenção, principalmente nos que vêm mascarados de salvação de algo tão sensível quanto água e energia.

Para garantir que o presidente não vete o texto, a estratégia será a mesma da capitalização da Eletrobras, quando o relator fez os artigos com parágrafos de quatro páginas. O motivo? O presidente só pode vetar parágrafos, não trechos, e não poderia vetar toda a capitalização. A estratégia ficou conhecida como Emenda Saramago, em alusão ao escritor português vencedor do Nobel de Literatura e conhecido por ter textos sem pontuação e longos parágrafos.

MAIS INCENTIVO Usinas termelétricas, como a do complexo de Parnaíba, terão subsídio extendido por mais oito anos dentro da proposta da MP da Crise Hídrica. (Crédito:Antonio Azevedo)

QUEDA DE BRAÇO Nesse tema, o Congresso atua bem pelos interesses de alguns setores — como agro, construção e energia. Mas fora do parlamento a reação de boa parte dos empresários foi péssima. Um dos críticos da proposta é o ex-secretário do Ministério de Minas e Energia Paulo Pedrosa, hoje presidente da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace). Segundo os cálculos da entidade, as medidas inseridas na MP 1.055 elevam em R$ 46 bilhões as contas de luz de pessoas físicas e jurídicas.

Na avaliação de Pedrosa, a estratégia de passar os jabutis “de uma árvore para outra” foi clara. “Os jabutis da MP da Eletrobras estão crescendo e se reproduzindo na MP da crise hídrica”, disse. Um dos pontos de maior atenção do executivo é que ao elevar o prazo de subsídio para fomento de energia suja, o Brasil vai contra a iniciativa mundial, que tem buscado alternativas mais limpas. Para completar, a construção dos gasodutos das térmicas da MP da Eletrobras, além de encarecer o preço da energia, afasta a região Norte e Nordeste dos projetos de energia renovável, como eólica e solar. “Estados como a Bahia, destaque em projeto renovável, terão seu mercado reduzido porque a oferta de energia será mantida pelas fontes garantidas na MP. ”
No entendimento de João Sanches, CEO da Trinity Energia, o lado positivo da MP foi a criação da Câmara de Gestão e Regras Excepcionais Hidroenergética, que estabelece medidas para redução voluntária do consumo, a bandeira da escassez hídrica e contratação de reserva de capacidade.

Para Sanches, apesar de positivas, sozinhas, essas medidas não bastam para a solução da crise hídrica do Brasil, principalmente se houver uma nova frustração no período úmido nos próximos anos. “Poderemos ter em 2022 uma situação ainda pior que a de 2021.”

ALTERNATIVAS Se o andamento da MP 1.055 parece colocar mais dúvidas que apresentar soluções para o fragilizado mercado de energia e abastecimento hídrico, uma alternativa, pode estar mais fácil do que parece. Trata-se do Projeto de Lei 414, aprovado no Senado no início deste ano e parado na Câmara desde então. A matéria. que foi criada em 2016, mas atualizada neste ano, aborda questões como uso de lixo como combustível, trata de transformação da matriz enérgica de acordo com as premissas globais e assume alguns parâmetros para abertura do mercado livre de energia, assunto considerado central para o desenvolvimento deste setor.

NA CONTA DE TODOS Taxa do governo no cálculo de transmissão ganhará o peso da construção dos gasodutos, mesmo que o consumidor não use ou acesse o biogás em suas residéncias ou empresas. (Crédito:Istock)

Sanches, da Trinity e Pedrosa, da Abrace, concordam que a PL é mais adequada por tratar de assuntos mais diretamente e melhor por estar com a tramitação mais avançada. E esse PL também agrada o governo. Com os jabutis pesando nos galhos da árvore da MP 1.055, reviver o PL 414 parece ser a aposta de Paulo Guedes, segundo assessores próximos ao ministro.

A preferência pela PL também também teria o aval do Ministério de Minas e Energia. O chefe da pasta, Bento Albuquerque, enalteceu a proposta do Senado em eventos neste mês, em especial após cadeias econômicas relevantes, como comércio, indústria de base e serviços critiacaram a MP.

A tensão sobre um eventual aumento na conta de luz foi tamanha que o relator da MP 1.055, Adolfo Viana (PSDB-BA), veio a público reforçar que o texto não irá acarretar custos aos consumidores. Só faltou explicar direito de onde sairiam os subsídios necessários para sustentar os jabutis. Apenas a construção dos gasodutos, por exemplo, demandará R$ 50 bilhões, segundo a Fiesp. Cálculos da comissão de Economia da Câmara citam mais R$ 33 bilhões a serem incorporados pelos consumidores em 15 anos. Isso sem contar os R$2,8 bilhões que a postergação do subsídio às usinas de carvão custará. Todas essas explicações o senhor Viana não deu. E elas precisam vir a cavalo, já que o texto caduca em 7 de novembro e ainda não há acordo.

Na quarta-feira (13), o senador Alessandro Vieira (Cidadania) e os deputados Felipe Rigoni (PSB) e Tabata Amaral (PSB) levaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) um mandado de segurança em que pedemque a Corte suspenda os jabutis da MP. Com tantos animais silvestres na árvore, talvez o caso fosse procurar o Ibama.

NOSSA BANDEIRA JÁ É VERMELHA

Gabriel Cabral

Não importa o que bradam os que há décadas falam sobre um fantasma do comunismo que irá turvar de rubro o lábaro que ostenta estrelado. A bandeira brasileira (pelo menos a da conta de energia) já está vermelha, e ela veio acompanhada do fantasma da inflação, da inadimplência, do apagão e da pressão na renda dos menos favorecidos. Em setembro, depois de atingir o nível 2, o governo criou a bandeira da escassez hídrica e aplicou nas contas de luz um aumento de 49,6%, na taxa paga a cada 100 kWh consumidos, indo de R$ 9,49 para R$ 14,20. A cifra não é só recorde, ela também é ineficiente e tem a mesma função de enxugar gelo — mas usando o papel (moeda) do contribuinte.

No Encontro Nacional do Setor Elétrico (Enesel) a secretária executiva do Ministério de Minas e Energia, Marizete Pereira, assumiu que o aumento da taxa não basta para cobrir a elevação de custos dos combustíveis usados pelas térmicas, e o governo busca formas de cobrir o rombo. “Subir a tarifa de energia? Isso não está ainda no cardápio que a gente está analisando.” Um exemplo desse maior custo por operação é a térmica Araucária (PR). A termoelétrica receberá R$ 2.553,20 por MWh gerado, se tornando a usina mais cara do País.