Imagine-se na seguinte situação: receber em dólares (seu salário atual multiplicado por mais de cinco) e manter a maioria dos gastos, como supermercado, aluguel, convênio médico e escola dos filhos, em reais mesmo. Guardadas as devidas proporções, esse cenário exemplifica o fluxo de caixa da gigante americana do agronegócio Cargill. Com a desvalorização do real, a alta das commodities agrícolas e o crescimento das exportações, a maior produtora de grãos do mundo rascunha um plano para transformar o cofre em aquisições, especialmente de pequenas empresas que entram em apuros durante a pandemia. “Ficamos de olhos bem abertos para potenciais aquisições no mercado brasileiro, já com o chapéu de compradores”, afirmou à DINHEIRO o CEO da companhia no Brasil, Paulo Sousa. “Podemos dizer que estamos com a pólvora seca preparada para disparar nos alvos certos.”

Essa empolgação, alimentada pelo câmbio favorável, não é a única estratégia da gigante dos grãos para os solos brasileiros. Com um investimento de R$ 550 milhões, a companhia dará início às operações da nova fábrica de pectina HM (matéria-prima utilizada na produção de bebidas lácteas, sucos e balas) na cidade de Bebedouro (SP) ainda neste primeiro semestre. De acordo com o relatório da Cargill, o crescimento do insumo é de cerca de 3% a 4% ao ano e, através da nova fábrica, a empresa conseguirá atender a demanda global já existente. A unidade do interior paulista vai resultar na geração de 100 empregos diretos.

Com 155 anos de história e faturamento de US$ 114,6 bilhões em 2019 (segundo o último balanço consolidado), o interesse da multinacional americana líder em soja e milho em expandir as operações nas terras férteis do Brasil é compreensível. De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o ano-safra 20/21 no País apresentou uma alta de produção de 3,1% em comparação com o ano-safra 19/20. Os resultados da soja no Brasil também foram bastante expressivos, com um incremento de 7,1% na produção, no mesmo comparativo.

Em paralelo à rentabilidade de plantar em real e colher em dólar, o desempenho recorde em volume de produção do setor agrícola em 2020 também impulsiona os resultados da companhia. Segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o Produto Interno Bruto (PIB) do setor fechou o ano com uma alta de 9%. Para este ano, o crescimento estimado é de 3%, o equivalente a R$ 1,8 trilhão. Essa nova perspectiva para o agronegócio acontece em um cenário de exportação recorde, somando US$ 93,6 bilhões, e de disparada de preços dos alimentos, com a inflação fechando o ano de 2020 em alta de 4,5%.

Além disso, os produtos que puxaram para cima o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) em 2020 foram o óleo de soja (alta de 103,7%) e o arroz (76%).

Para a líder mundial na produção de soja, uma série de fatores colocou o item no topo da lista. Entre eles está o crescimento expressivo na demanda interna e externa, e o cenário de estoques globais, principalmente para países como a China. “A atuação do Brasil na manutenção de alimentos foi nota 10, tanto que o País conseguiu dar conta da demanda interna e de outros países, mas isso acabou resultando na alta dos preços”, disse Paulo Sousa. Para o CEO da Cargill, a tendência é de crescimento no preço também para as carnes, principalmente pela grande demanda chinesa pelo produto. “Esse é um cenário que não dará muito alívio para o consumidor neste ano, principalmente porque o estoque global das commodities agrícolas deve permanecer”.

Em paralelo aos movimentos de franca expansão no mercado brasileiro, a Cargill deve romper sua participação na joint venture com a Copersucar.

Em comunicado divulgado pela global de açúcar e etanol, é confirmada a discussão de um acordo para torná-la a acionista totalitária da Alvean, líder nos mercados globais de açúcar. Hoje, Cargill e Copersucar possuem 50%, cada, das ações da empresa originária da fusão. Procurada, a Cargill não quis comentar os motivos da decisão.

IMAGEM COMPROMETIDA Após a declaração do presidente francês Emmanuel Macron, no dia 12, de que “continuar dependendo da soja brasileira é endossar o desmatamento da Amazônia”, o nível de conhecimento do agronegócio brasileiro pelos mercados externos foi colocado em cheque. Para Sousa, a afirmação do presidente francês reflete a necessidade de melhora na comunicação do setor com o mundo. “Tem sempre os desinformados ou mal intencionados que querem ligar a produção de soja à Amazônia. No caso dele, com certeza foi mal orientado”, disse Sousa. O equívoco com relação ao bioma não torna menos importante a discussão sobre a questão ambiental no Brasil, que, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), registrou em 2020 o maior desmatamento da Amazônia em 12 anos, com um crescimento de 9,5% na área atingida.

Esses resultados negativos comprometem a imagem do País. E da Cargill. Em relatório da Mighty Earth, organização de campanha ambiental global, em dezembro do 2020, a companhia foi apontada, junto com a JSL, como a principal empresa responsável pelo desmatamento em áreas da Amazônia e do cerrado. Segundo o estudo, a Cargill estaria ligada ao desaparecimento de 61.260 hectares nos dois biomas brasileiros, uma área quase do tamanho de Chicago, nos Estados Unidos. Defendendo o compromisso da empresa com a sustentabilidade, Sousa alega que o Brasil possui um código florestal excelente, mas que os brasileiros de maneira geral não conseguiram, até agora, implementá-lo em sua totalidade. “Isso abre espaço para críticas, e com razão. A Cargill não é o problema, pelo contrário, faz parte da solução”, afirmou o CEO.