Em setembro de 2019, quando as primeiras sementes de soja da atual safra começavam a ser plantadas em terras brasileiras, nem mesmo os mais pessimistas poderiam prever que o mundo estava prestes a ser atingido por uma das maiores pandemias da história, que já matou mais de 260 mil em todo o planeta. E mais: que o vírus surgiria na China, o maior comprador global de alimentos e o principal parceiro comercial do Brasil, destino de 80% de toda soja que o País exporta, e que a cotação do dólar – principal fator de custo e rentabilidade – saltaria de R$ 4,16 para os atuais R$ 5,70.

Toda essa reviravolta na economia mundial assusta a imensa maioria das empresas, mas tem sido vista como uma janela de oportunidades pela gigante americana do setor de alimentos Cargill. Líder global em soja e vice-colocada em milho, a companhia acredita que será uma das beneficiadas com essa mutação internacional do ambiente de negócios, com forte crescimento neste ano. A operação brasileira, que registrou no ano passado receita de R$ 48,6 bilhões, alta de 7% em relação a 2018, deve fertilizar ainda mais seus resultados em 2020, na visão do CEO, Paulo Sousa. “É chato ver lado positivo em um uma crise desse tamanho, mas tudo isso vai nos ajudar sim”, afirma o executivo. “A desvalorização do real trouxe ao homem do campo a vontade de vender sua produção, justamente quando nossos clientes de exportação buscavam aumentar níveis de compra por conta da Covid-19. E muitos países fizeram mais contratos para garantir a oferta.”

No ano passado, a Cargill ampliou a aposta no Brasil, aumentando os investimentos de R$ 500 milhões, previstos inicialmente, para R$ 656 milhões. Para Sousa, mesmo que ainda não esteja no patamar ideal, a infraestrutura logística brasileira, como pavimentação da BR-163, ligando o Centro-Oeste ao Pará, foi determinante para o sucesso das exportações. Soma-se a isso o clima favorável, mais quente e seco, favorável para o cultivo e transporte de grãos. Com essa combinação de fatores, o volume total comercializado pela companhia ultrapassou 36 milhões de toneladas em 2019, alta de 12% em relação a 2018.

No início de abril, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) emitiram comunicado conjunto alertando sobre risco de escassez de alimentos no mercado global, a ministra da Agricultura e Pecuária, Tereza Cristina, se apressou para tranquilizar os países compradores que não haveria menor risco de falta de abastecimento, que todos os contratos seriam cumpridos e que a situação brasileira seguia favorável.

O Brasil, não por acaso, registrou recorde de volume de envio de soja para todas as partes do mundo, com 16,3 milhões de toneladas. No ano, já são, segundo o governo federal, 34,5 milhões de toneladas embarcadas, número histórico no acumulado dos quatros primeiros meses do ano. Em 2019, foram 78,7 milhões de toneladas do grão, metade do que é exportando no mundo, que renderam US$ 28 bilhões – cerca de R$ 160 bilhões. Neste ano, o crescimento dos embarques para China chegou perto de 30%. Somente nos três primeiros meses deste ano saíram pelos terminais do Porto de Santos, maior complexo portuário da América Latina, 8,9 milhões de toneladas. Em termos de produção, também há recordes. A estimativa para a atual safra, que está na fase final de colheita, é de 122 milhões de toneladas, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Na anterior, foram colhidas 115 milhões de toneladas de soja.

AJUDA A Cargill realizou ações de ajuda no combate ao coronavírus no Brasil, por meio da Fundação Cargill, com doação de R$ 400 mil para compra de alimentos e cestas básicas para 68 instituições que atendem 17 mil pessoas. Também foram destinados R$ 150 mil para o Banco de Alimentos de São Paulo e mais R$ 50 mil para outras organizações sociais.
A Cargill adaptou a usina de Patrocínio Paulista, no interior de São Paulo, que produz etanol para combustíveis, para produção de álcool líquido 70% para doação. A companhia não revela a quantidade de frascos distribuídos. Com 23 fábricas, seis terminais portuários e 11 mil funcionárias, a divisão brasileira da companhia tem hoje cerca de 3,3 mil colaboradores em home office. Os demais estão em fábricas, portos e armazéns. Por enquanto, a empresa não aderiu à medida oferecida pelo governo federal de suspensão de contratos de trabalho.

O presidente da Cargill avalia que o episódio do surto de H1N1 (inicialmente chamada de gripe suína e que matou mais de 17 mil pessoas entre 2009 e 2010), foi muito mais prejudicial para o setor e para a própria companhia. “O vírus dizimou parte do plantel suíno chinês à época, e afetou demais a demanda por farelo de soja. Mas também foi uma grande oportunidade para indústria brasileira de carne para ajudar a repor a oferta para o público daquele país”, afirma Sousa.

MERCADO Para a analista de mercado de grãos da consultoria FCStone, Ana Luiza Lodi, nem mesmo o recente acordo pondo fim à guerra comercial entre Estados Unidos e China, e que resultará no aumento na compra do produto americano, irá afetar os números do Brasil. “O Brasil não foi afetado porque já tinha parte da safra comercializada. Estamos no melhor momento de exportação”, afirma. “A safra americana ocorre em momento diferente. Enquanto somos muito fortes no primeiro semestre, eles crescem no segundo. O Brasil não perderá espaço”, garante a economista, indicando que o País é um dos únicos players do setor que ainda têm área cultivável para expandir, sem precisar ocupar espaço de outra cultura.

SAFRA RECORDE: A estimativa para a atual safra, que está na fase final de colheita, é de 122 milhões de toneladas. Na anterior, foram colhidas 115 milhões de toneladas de soja. (Crédito:Alf Ribeiro)

Tudo isso só é possível porque o agronegócio brasileiro conseguiu, ao longo dos anos, conquistar uma imagem extremamente positiva, de cuidados com toda a cadeia, junto aos principais mercados consumidores do mundo. O presidente da Cargill, no entanto, não esconde a preocupação com a reputação do Brasil no exterior, arranhada recentemente em dois episódios com potencial de custar caro para a economia do País: a discussão com grandes líderes mundiais que apontavam preocupação pelo crescente desmatamento na Amazônia, além, é claro, da péssima imagem mundo afora por conta da sinalização de rota totalmente contrária, no combate ao novo coronavírus, de boa parte dos chefes de estado, até mesmo de Donald Trump.

Para Sousa, a condução das autoridades no episódio em que o mundo falou da floresta amazônica foi muito desgastante para o País e poderia resvalar na economia do agronegócio. Bolsonaro chegou a atacar diretamente o presidente francês, Emmanuel Macron, e dispensou recursos da Alemanha para o fundo de apoio ao meio ambiente. “Estamos desenvolvendo reputação muito ruim como destruidores da Amazônia e sem preocupação com aquecimento global. A responsabilidade de reverter essa visão precisa ser capitaneada pelo governo federal”, afirma o presidente da Cargill.

Gado sem vacina acende o alerta

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Há exatos 14 anos, o Brasil registrava o último caso de contaminação de febre aftosa no rebanho, no Mato Grosso do Sul. E isso, na prática, significava credibilidade, que pode ser lida como recuo de compradores por falta de confiança no produto. Em 2018, o Brasil obteve o status de país livre de febre aftosa com vacinação, concedido pela Organização Mundial de Saúde Animal (OIE). O próximo passo seria se tornar livre de aftosa sem vacinação, o que garantiria exportação de carne com osso. E se há um setor, além da soja, em que o Brasil é uma potência mundial, é na exportação de carne. Mesmo com a pandemia da Covid-19, a perspectiva é de crescimento, com estimativa de 2 milhões de toneladas, acima do resultado de 1,8 milhão exportados pelo Brasil no ano passado. São 140 países que recebem a carne brasileira. Em abril, foram 116 mil toneladas, alta de 3% em relação ao mesmo mês do ano passado, segundo o Ministério da Economia.

Por ano, são investidos cerca de R$ 300 milhões em 325 milhões de doses para vacinar 200 milhões de cabeças de gado em duas etapas (em maio o rebanho total e em novembro, os animais com até 24 meses). Mas, alguns estados têm tomado a decisão, por conta própria, de não vacinar seus rebanhos, diferentemente do previsto no plano discutido pelo Ministério de Agricultura e Pecuária, que prevê ação em conjunto. O presidente do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Saúde Animal (Sindan), Delair Bolis, demonstrou preocupação com a iniciativa. “Sou a favor do programa de erradicação da aftosa, mas temos de lembrar que a Colômbia teve um caso no rebanho no ano passado e o Sindan chegou a doar vacinas para a Venezuela, que não tinha recursos para garantir a saúde do gado”, diz, ao citar Acre e Rondônia. “Vírus não tem fronteira, como estamos vendo no caso do coronavírus. O que não podemos é colocar em risco a venda para 140 países por conta de algum possível benefício em um ou outro mercado”, afirma o dirigente do sindicato. Em janeiro, o governo federal concluiu consulta pública sobre mudanças na legislação para implementação da retirada gradual de vacinação. A previsão do ministério é de que o Brasil atinja o novo status até 2023.