Ao ser eleito presidente da República com cerca de 57 milhões de votos em 2018, Jair Messias Bolsonaro tinha o apoio de dois grandes grupos. O primeiro, maior e mais fiel, era ideológico. O segundo, pragmático, apoiava a prometida adesão do candidato a uma pauta econômica liberal e francamente pró-mercado, personificada em Paulo Guedes, o “posto Ipiranga” da economia. O apoio do empresariado foi maciço, em especial no agronegócio e no mercado de capitais. Quase três anos depois, boa parte dos eleitores pragmáticos desencantou-se com Bolsonaro. As razões são inúmeras. A sucessão de trapalhadas, a falta de avanço nas reformas, o amadorismo no combate à pandemia e o alinhamento com o lado fisiológico na política nacional merecem destaque. Mas houve algo além: a incompetência na condução da política econômica (confirmada pelo PIB negativo em 0,1% no segundo trimestre) somou-se às ameaças feitas pelo presidente da República à democracia, especialmente em ataques ao Judiciário. Com isso, governo e empresários passaram a ter agendas conflitantes. Um divórcio parecia inevitável.

No início de agosto, um grupo de centenas de empresários e economistas assinou um breve manifesto em defesa da aceitação dos resultados das eleições de 2022 sem exigência da confirmação impressa dos votos. Era um recado direto a Bolsonaro, que vinha mirando sua metralhadora verbal em uma impossível “fraude” eleitoral que seria orquestrada para, segundo ele, impedir sua vitória. Nos dias que se seguiram, a tensão entre o presidente da República e o Judiciário aumentou. Bolsonaro atacou três ministros do Supremo Tribunal Federal (STF): Luiz Fux, presidente do STF, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, cujo pedido de impeachment foi protocolado pelo presidente no Senado, o que não prosperou. Bolsonaro subiu o tom, parte pela frustração, parte para mostrar força à sua base eleitoral. Isso gerou o maior estranhamento entre o empresariado e o governo em décadas. Tanto a gestação quanto o resultado desse processo demonstram de forma didática como funcionam as relações entre setor público e iniciativa privada no País.

GUEDES PERDEDOR Incensado pelo mercado de capitais no início do governo Bolsonaro, ministro da Economia agora é visto como parte do problema. (Crédito:Bruno Santos)

A ideia de publicar um manifesto com críticas à gestão da economia começou no sistema financeiro. Banqueiros falam pouco e quase nunca em público, por isso as conversas aqui relatadas — e confirmadas à DINHEIRO por vários interlocutores — não trazem nomes. No entanto, mesmo tendo apoiado Bolsonaro na largada, os empresários mais tradicionais do setor expressam, reservadamente, seu desagrado com o governo. A razão é a mais básica: lucros ameaçados.

Apesar de os resultados dos bancos terem permanecido pujantes no segundo trimestre, as iniciativas do Banco Central (BC) para aumentar a concorrência dentro do sistema podem mudar isso. Um bom exemplo é o Pix. Mesmo tendo sido introduzido em novembro de 2020, ele já é o segundo meio de pagamento preferido dos brasileiros, por ser instantâneo e gratuito. Isso drena os ganhos dos bancos com as tarifas de serviços e com a aplicação dos recursos que são movimentados. Além do Pix, a aprovação da terceira fase do open banking, ainda que adiada para outubro (leia a reportagem à página 24) será um divisor de águas para aumentar a competição no sistema. Foi o suficiente para a insatisfação tornar-se mais audível.

Na primeira quinzena de agosto, duas lideranças do setor reuniram-se com um dos publicitários mais conhecidos do País, que funciona como um consultor informal. O resultado da conversa foi que seria pertinente deixar o desagrado claro para o governo, divulgando uma nota que pedisse a harmonia entre os Três Poderes e o respeito à democracia. E, de quebra, criticasse a política econômica, que piorava a percepção de risco e comprometia o crescimento econômico. A conclusão foi encaminhar a carta pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban), que representa o setor.

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“Muitos [líderes setoriais] me disseram que gostariam de participar, mas precisaram se abster porque suas cadeias de abastecimento dependem de uma canetada governamental” Marcelo Britto Presidente da Associação Brasileira do Agronegócio.

Diferentemente das federações da indústria e do comércio, que têm origem no governo Getulio Vargas, as funções da Febraban vão além da representação. Ela é também uma interface entre o sistema financeiro e as autoridades. Bancos são uma atividade complexa. Além de se relacionarem com seus clientes, eles têm de se comunicar constantemente para processar transferências e pagamentos. Assim, quando o Banco Central quer implantar uma mudança como o Pix, ele conversa com a Federação, e não com os bancos isoladamente. “O BC decide o que tem de ser feito, a Febraban define como será feito”, afirmou um ex-diretor da entidade.

Aí surgiu a primeira saia justa. Dois dos cinco maiores participantes da Febraban são os estatais Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, que não poderiam endossar críticas ao governo, seu controlador. Como as decisões mais sérias são colegiadas, criou-se um impasse que durou até a penúltima semana de agosto. Quem se ofereceu para tentar resolvê-lo foi uma personagem controversa, o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf. Sua disposição de cuidar dos detalhes práticos, como custear as despesas da publicação e atrair signatários além do sistema financeiro para tornar o manifesto mais “representativo” não foi recebida com muito entusiasmo pelos bancos, sistematicamente criticados pela Fiesp e por seu presidente. Mesmo assim, a Febraban fechou com a Fiesp.

Há 17 anos no comando da Federação, Skaf tentou várias vezes usar o prédio na Avenida Paulista como plataforma de lançamento para uma carreira política, sem muito sucesso. Para isso, ele já fez a Fiesp patrocinar patos de borracha gigantes e sapos infláveis tamanho família. Eram protestos, respectivamente, contra os impostos cobrados pelo governo e os juros praticados pelos bancos — aqueles mesmos representados pela Febraban, cujo impasse gentilmente se propôs a resolver. Os banqueiros desconfiaram.

O PATO DA INDÚSTRIA Há 17 anos no comando da Fiesp Paulo Skaf vem tentando, sem sucesso, usar seu cargo como plataforma de uma carreira política. Sua mais recente jogada desagradou banqueiros e empresários . (Crédito:Ayrton Vignola)

Na última sexta-feira de agosto o burburinho chegou ao Planalto Central. A informação de que empresários e banqueiros estariam preparando uma carta com críticas ao governo e em defesa da democracia poucos dias antes da manifestação bolsonarista prevista para o feriado de 7 de setembro caiu como uma bomba no governo, principalmente nos gabinetes palacianos comandados por generais, onde a inclinação republicana é mais fraca. No Ministério da Economia, duas fontes próximas ao ministro Paulo Guedes confirmaram à DINHEIRO que o assunto vinha sendo encarado com normalidade. Até a hora em que Skaf resolveu telefonar para o ministro Paulo Guedes para mascatear seus préstimos, contando que havia “livrado o governo de um problema muito maior”.

Na conversa, o presidente da Fiesp garantiu que a versão do texto redigida pelos banqueiros trazia duras críticas ao governo, mas que ele, Skaf, contornara a situação. Esse telefonema fez Guedes, não exatamente cauteloso com as palavras, deixar a residência oficial do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) afirmando que “alguém na Febraban teria mudado o manifesto pela democracia para um ataque ao governo.” Dias depois, na quarta-feira (1) Bolsonaro aproveitou um evento militar para tirar a língua do coldre. “Se você quer paz, se prepare para guerra”, disse, ao entregar medalhas aos representantes das Forças Armadas que se destacaram nos Jogos Olímpicos de Tóquio. A caminho para o evento, ele bradou a apoiadores que “o tempo da patifaria passou, agora é o povo no poder e não vamos negociar nada.” Horas mais tarde, o presidente usou as redes sociais para compartilhar um documento assinado pela Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg) intitulado Manifesto pela Liberdade, com críticas ao STF, e dizendo que o empresariado “que importa” está do lado certo da história. A posição da Fiemg rachou os empresários do estado. Na quarta-feira (1) mais de 200 deles, incluindo Salim Mattar, que foi secretário de desestatização do governo, assinaram o Segundo Manifesto dos Mineiros, em defesa da democracia.

Antes do vai-e-vem empresarial, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (DEM-AL), já havia entrado em campo. Em conversa com Skaf, afirmou que o presidente da Fiesp estava “em débito” com a Câmara por ter sido forte opositor à reforma do Imposto de Renda que tramita na Casa (leia à página 20). A conversa convenceu Skaf de que seria mais prudente para a Fiesp permanecer onde sempre esteve desde os tempos em que Getulio Vargas fumava seus charutos: a favor do governo. Na conversa, Skaf se comprometeu com Lira a adiar para depois do dia 7 de setembro a publicação da carta “A Praça é dos Três Poderes”, cujo texto, nesse meio tempo, já havia vazado para a imprensa — e era tão ameaçador quanto os patos de borracha ao gosto do presidente da Federação.

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“Não há traços de uma agenda liberal neste governo. Houve um autoengano generalizado. As pessoas preferiam arriscar para evitar um suposto mal maior, que seria a volta do PT” Pérsio Arida Economista.

PRESSÃO DOS ESTATAIS Antes disso, porém, os banqueiros já haviam desembarcado. Durante o fim de semana, Pedro Guimarães, presidente da Caixa, e Fausto Ribeiro, presidente do Banco do Brasil, conversaram com seus pares do setor privado. Ribeiro, com suas décadas de vivência em Brasília, foi diplomático ao dizer que a Febraban não deveria assinar o manifesto. Já Guimarães foi direto ao ponto e garantiu que o resultado do processo “não seria muito bom para os bancos privados”. Tradução: os negócios com o governo ficariam muito mais distantes e a fiscalização do BC, muito mais próxima. Na segunda-feira (30), a Febraban divulgou uma nota dizendo que o manifesto “foi articulado pela Fiesp” e elaborado por “representantes de vários setores, inclusive o financeiro”. A Febraban deixou claro que “não participou da elaboração de texto que contivesse ataques ao governo ou oposição à atual política econômica”. Mesmo assim, a intenção de publicar alguma crítica perdurou, levando o presidente do BB a solicitar, na noite da quarta-feira (1) uma reunião com os bancos privados para dissuadi-los da ideia.

A única manifestação crítica ao governo veio de um setor muito identificado com o bolsonarismo: o agronegócio. A Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) divulgou um manifesto na segunda-feira (30) em defesa da harmonia político-institucional do Brasil. Na nota, as entidades da agroindústria afirmam estar preocupadas com as consequências das divergências entre os Poderes sobre a estabilidade econômica e social do País e dizem precisar do Estado Democrático de Direito e da “liberdade empreendedora essencial numa economia capitalista, que é o inverso de aventuras radicais (…) e partidarização nociva que, longe de resolver nossos problemas, certamente os agravará”.

Segundo o presidente da Abag, Marcelo Britto, apesar de o País estar exportando bastante, sua imagem está corroída, o que prejudica o valor dos produtos e a competitividade em mercados importantes, como o europeu. Outro ponto de atrito é a questão ambiental. Britto disse que o Brasil está afastando potenciais consumidores no mercado internacional ao não preservar o meio ambiente. Ele criticou o Conselho da Amazônia, liderado pelo vice-presidente Hamilton Mourão e disse ter ficado “chateado” com o fato de o Exército ter prometido manter a força-tarefa contra o desmatamento até 31 de dezembro de 2022, mas já ter interrompido a operação. Britto afirmou que mais entidades poderiam ter participado se não dependessem do setor público. “Muitos me disseram que gostariam de participar, mas precisaram se abster porque suas cadeias de abastecimento dependem de uma canetada governamental.”

O ensaio do empresariado (e mais ainda o recuo) já era esperado por estudiosos como Carlos Diniz Martins, doutor em política pela Universidade de Brasília e professor da Universidade do Colorado (EUA). “Não há na história brasileira registro de uma luta cujo berço foi do topo da pirâmide. Pela dependência do Estado, é inviável qualquer afronta”, disse. A exceção, ressalta, se deu na queda da monarquia. “Depois disso os empresários só se posicionaram quando um governo, ou regime, já caía de podre”, afirmou. A diferença, desta vez, é que há no poder uma pessoa intolerante e instável, então qualquer faísca tem potencial de virar um fogaréu. “Bolsonaro sabe usar tudo como arma política para seus apoiadores que, apesar de minoria, têm uma capacidade gigantesca de criar barulho e tensão, tornando a situação insustentável”, afirmou. Para ele, se Bolsonaro subir ainda mais o tom contra os outros Poderes e seguir “nesse devaneio megalomaníaco” será preciso que as entidades setoriais e grandes empresas já tenham um plano. “Espero que já estejam pensando em como vão se posicionar se as coisas piorarem. Na ditadura, algumas empresas precisaram de 60 anos para ficar contra o regime”.

DECEPCIONADOS E ARREPENDIDOS Para o economista Pérsio Arida, um dos nomes por trás da criação do Plano Real, a elite financeira do Brasil hoje se divide em decepcionados e arrependidos. “Não há traços de uma agenda liberal neste governo. Houve um autoengano generalizado. E eu tentei avisar, lá em 2018. Mas o contexto era outro, então as pessoas preferiam arriscar para evitar um suposto mal maior, que seria a volta do PT.” Nesse evento, perto da última eleição, Arida chegou a dizer diretamente para agentes do mercado financeiro que eles estavam fazendo uma escolha errada ao acreditar que Paulo Guedes mudaria o pensamento intervencionista e autoritário de Bolsonaro. “Eles acreditavam que Bolsonaro encontrou Guedes e se converteu. O próprio Guedes acreditou nisso. Quiseram acreditar numa miragem. Uma miragem perigosa”, disse, questionando se, quando precisa de um CEO, algum desses apoiadores de Bolsonaro aceitaria contratar um candidato cujas convicções fossem inversas à cultura da empresa.

Para as tendências golpistas de Bolsonaro e a incerteza dos empresários, Arida ressalta que o Brasil também vai mal aos olhos do mundo. “O Brasil poderia liderar investimentos na área ambiental se tivesse comprometimento com esta agenda, mas está perdendo por causa de uma agenda retrógrada, na contramão do mundo”, disse. Com essa junção de fatores formando uma bomba relógio, Arida se disse preocupado. E com razão: “Nós vivemos uma tentativa de morte da democracia por erosão. De dentro para fora. É contra isso que a sociedade brasileira precisa reagir.” No século 21, a forma de derrubar uma democracia não é pelo golpe literal e sim deixando que o regime democrático apodreça. E, nisso, Bolsonaro pode se sair bem.

AS PÉROLAS DE GUEDES

Foto montagem: Evandro Rodrigues

“Qual é o problema? A energia ficar mais cara porque choveu menos…”

“A inflação está subindo no mundo inteiro. A nossa crescer 7% ou 8%. Estamos no jogo”

“O PIB veio estável no trimestre mais trágico da pandemia”

“A economia voltou em V, estamos crescendo novamente. Hoje saiu um dado [PIB], é praticamente de lado. Como foi -0,05%, arredondou para -0,1%. Se fosse -0,04% era zero”