Nos últimos anos, a China não tem medido esforços para ultrapassar as fronteiras de sua famosa Muralha. A cada ano, um volume crescente de recursos vem sendo destinado a aquisições e fusões que traduzem o apetite da gigante asiática para consolidar sua liderança global. Nessa jornada, as empresas do Brasil são um alvo recorrente, nas mais variadas indústrias, das hidrelétricas ao setor financeiro. No sábado 11, no entanto, um acordo desafiou essa corrente. Maior rede de concessionárias do País, a Caoa pagou US$ 60 milhões por 50% da operação local da montadora chinesa Chery. O pacote inclui a fábrica da companhia em Jacareí, no interior de São Paulo. Com a transação, que vinha sendo negociada há 18 meses, a marca será rebatizada como Caoa Chery. A parceria prevê ainda um investimento de US$ 2 bilhões nos próximos cinco anos e boa parte desse montante será de responsabilidade do grupo brasileiro.

Sob nova direção: CEO do grupo Caoa, Mauro Correia vai acumular o cargo com o posto de presidente na Caoa Chery. O plano do executivo é acelerar a estruturação da rede de concessionárias e da oferta de serviços da montadora (Crédito:Claudio Gatti)

Não seria exagero dizer que o acordo é um verdadeiro negócio da China para a empresa brasileira. O valor investido é bem inferior aos US$ 530 milhões aportados pela Chery desde que desembarcou oficialmente no Brasil, em 2014. E um componente, em especial, reforça essa tese. “Nós definimos que a gestão ficará sob a nossa responsabilidade”, afirma Carlos Alberto de Oliveira Andrade, fundador e presidente do conselho de administração da Caoa, cujo nome une as iniciais do empresário. Na contramão dos termos estabelecidos tradicionalmente nessas parcerias, tanto por empresas chinesas como na indústria automotiva em geral, ele ressalta outro fator crucial para a operação. “Ficou acertado que boa parte do lucro gerado permanecerá no Brasil e será reinvestido aqui.” Ainda em fase de estruturação, a Caoa Chery, inicialmente, terá o comando de Mauro Correia, CEO da Caoa. “Estamos unindo duas grandes forças”, afirma o executivo. “Em cinco anos, nosso objetivo é chegar a uma participação de 5% no mercado brasileiro.” Mas não será fácil.

Desde que chegou ao País, a Chery vem patinando para se estabelecer no mercado. Fruto de um investimento inicial de US$ 400 milhões, só linha de montagem, e com uma capacidade instalada de 50 mil veículos por ano, a fábrica própria em Jacareí tornou-se um dos principais símbolos dessa trajetória malsucedida. Em 2016, por exemplo, a companhia encerrou o ano com apenas 5 mil carros produzidos. A unidade acumula uma série de paralisações, seja por falta de demanda ou pelas constantes reivindicações dos cerca de 400 funcionários por reajuste salarial, entre outras questões. As revendas da marca, que chegaram a mais de cem lojas, hoje se resumem a pouco mais de 20 pontos de venda. E, como reflexo, o saldo dessa equação é crítico. Mesmo com a aposta em modelos mais acessíveis, a Chery detém uma participação pífia no mercado brasileiro, de 0,17%, de janeiro a outubro deste ano.

Sinergia: voltada à produção de modelos da coreana Hyundai, a unidade da Caoa instalada em Anápolis (GO) também será usada para fabricar parte do portfólio da Caoa Chery (Crédito:Divulgação)

Para mudar essa história, o CEO da Caoa já tem um plano traçado. Ele pretende formar uma rede robusta de concessionárias, construir uma oferta de serviços de qualidade e investir pesadamente em marketing. “De certa maneira, estamos partindo do zero”, diz o executivo. Correia acrescenta que a ampliação do portfólio local também está no escopo. A previsão é de que os primeiros modelos pensados a quatro mãos comecem a chegar ao Brasil em meados de 2018. Hoje, a linha está restrita ao QQ e ao Celer (hatch e sedã). A ideia é lançar de dois a três modelos por ano. O SUV Tiggo pode ser uma das apostas para a marca crescer no Brasil, já que a demanda por esse tipo de automóvel é crescente e a Caoa conhece bem esse mercado. Além da fábrica em Jacareí, a unidade fabril da Caoa em Anápolis, que produz os modelos Tucson, ix35 e HR, da Hyundai, e hoje opera com 60% de ociosidade, também será incorporada aos ativos da nova operação e poderá ser usada para a produção local. “Vamos atuar em todos os segmentos e categorias, com preços competitivos.”

Entusiasmo à parte, o mercado especula que a associação com a Chery seria uma preparação para o fim da parceria com a Hyundai, que já possui uma estrutura estabelecida no Brasil e que, em um processo natural, estaria interessada em controlar 100% dessa operação. Procurada, a montadora coreana afirmou em comunicado que o lançamento da Caoa Chery é uma negociação independente, sem comprometimento para o relacionamento comercial entre Caoa e Hyundai. Questionado, Carlos Alberto de Oliveira Andrade nega qualquer possibilidade de rompimento da parceria com a Hyundai. E lança mão de sua conhecida habilidade como vendedor para valorizar o seu passe e a Caoa. “O investimento da Cherry só reforça o interesse da Hyundai em fortalecer a parceria conosco. Eles querem que ter a mesma atenção que daremos para a nova montadora”, afirma. “As duas marcas vão impulsionar a nossa expansão. Mas só o tempo irá dizer qual delas irá crescer mais conosco.”

Alguns elementos ajudam a explicar posição privilegiada da Caoa na nova operação. O principal deles é o currículo de peso de Andrade. Prestes a completar 74 anos, ele está acostumado a desafiar convenções. Formado em medicina, ele exerceu a profissão nos anos seguintes à conclusão do curso. O status profissional, no entanto, não veio das horas de trabalho em consultórios e hospitais. Mas, sim, das três décadas de atuação na indústria automotiva, historicamente dominada por um grupo restrito de multinacionais e pelos executivos de seus respectivos países de origem: americanos, alemães, italianos. Foi nesse ambiente pouco favorável ao protagonismo de outros atores que o paraibano de João Pessoa conseguiu exercer um papel de destaque.

Essa história teve início em 1979, quando Andrade comprou um Landau, em uma concessionária de Campina Grande (PB). O automóvel era o seu sonho de consumo. Porém, o revendedor, que estava à beira da falência, não entregou o veículo. Para “abater” o prejuízo, Andrade decidiu comprar a loja, na época, por 4 milhões de cruzeiros. Nascia a Caoa. Em menos de dois meses, ele triplicou o volume de carros comercializados, o que chamou a atenção da Ford. Pouco tempo depois, foi convidado pela montadora para assumir outras unidades da rede em Recife e em São Paulo. Em menos de seis anos, a Caoa tornou-se a maior revendedora da marca na América Latina. E o empresário, um sinônimo de vendas no setor.

Nas décadas seguintes, Andrade e a Caoa não se limitaram a impulsionar as vendas da Ford, uma das gigantes mundiais do setor. Com uma estratégia de fortes investimentos em canais de distribuição, marketing e serviços pós-venda, eles foram decisivos para a construção e a consolidação de marcas até então praticamente desconhecidas pela maioria dos consumidores brasileiros. A primeiras delas foi a francesa Renault. Em 1992, com a abertura do mercado, a Caoa passou a ser a importadora exclusiva da marca no País. A relação acabou em 1998, quando a montadora investiu em uma fábrica no Paraná e resolveu encerrar a parceria com a empresa brasileira. A situação rendeu um imbróglio judicial e um pedido de indenização por parte do empresário, que nunca foi objeto de uma decisão definitiva. Antes disso, a Renault chegou a ocupar o quinto lugar no ranking das mais vendidas no mercado local. Atualmente, a empresa figura na sétima posição, com uma participação de 7,83% no acumulado de janeiro a outubro, segundo dados compilados pela Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave).

Ainda em 1998, a Caoa passou a ser o representante oficial e exclusivo da japonesa Subaru. Em menos de um ano, as vendas da empresa asiática triplicaram no País, fruto de uma parceria que perdura até hoje. O exemplo mais emblemático, porém, é o da coreana Hyundai, que integra o seu portfólio de distribuição desde o ano 2000 e é a principal bandeira por trás das mais de 180 concessionárias do grupo brasileiro. Nesse caso, as cláusulas do contrato foram além da questão da importação. Em 2007, a Caoa investiu R$ 1,2 bilhão para erguer uma fábrica em Anápolis (GO). A Hyundai tem direito a uma taxa de royalty por cada um dos carros dessas linhas vendidos no País. Com o avanço no Brasil, a coreana inaugurou sua primeira fábrica na América Latina, em 2012, bem como uma rede própria de distribuição. Instalada em Piracicaba, no interior de São Paulo, a unidade responde pela produção dos veículos da família HB20 e do Creta.

O sucesso da associação da Hyundai com a Caoa, que transformou uma marca que sofria com problemas de imagem em uma das mais prestigiadas, é atestado por diversos indicadores. Em 2012, Andrade recebeu o prêmio de distribuidor do ano da matriz coreana, levando-se em conta os 179 parceiros da companhia em todo o mundo. O principal feito, no entanto, veio quando a montadora fechou 2016 entre as quatro marcas mais vendidas no Brasil, desfazendo o domínio do quarteto formado por Volkswagen, GM, Fiat e Ford, que há três décadas permanecia intocável na liderança. No ano, a Hyundai emplacou um total de 197.860 veículos no País. A Caoa respondeu pela venda de 30.186 unidades desse volume.

As táticas comerciais agressivas, com descontos e promoções e pesados investimentos em propaganda, deram a Andrade o status de construtor de marcas. No decorrer dos anos, o empresário também teve seu nome ligado a polêmicas. Ele foi um dos indiciados na operação Zelotes, da Polícia Federal, em inquérito que apura a compra de uma medida provisória para favorecer montadoras instaladas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Editada novembro de 2009, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a MP em questão prorrogou a duração da lei que previa o desconto de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) a essas empresas. Previstos inicialmente para vigorar até 2010, esses incentivos fiscais foram estendidos até o fim de 2015. O grupo também foi citado na Operação Acrônimo, por suspeita de pagamento de propinas para agentes públicos. A Caoa defende-se das acusações e, em nota, o advogado Paulo Emilio Catta Preta disse ao jornal O Estado de S.Paulo que as investigações atestam “a absoluta inocência da empresa”.

Potencial: com capacidade instalada de 50 mil veículos por ano, a fábrica da Chery, em Jacareí (SP), fechou 2016 com uma produção de apenas 5 mil carros (Crédito: Lucas Lacaz Ruiz/Folhapress)

Problemas à parte, o sucesso do empresário em desbravar o mercado brasileiro para marcas novatas parece ter sido o fator decisivo na concretização da negociação com a Chery. Será mais uma prova de fogo para Caoa, que precisa vencer a principal batalha do mercado para as marcas chinesas: conquistar a confiança dos consumidores – desafio, por sinal, superado pelas marcas coreanas, como a Hyundai. A Chery não é a única montadora chinesa com dificuldades para se firmar no Brasil. JAC Motors, Geely e Lifan também têm enfrentado esse mesmo desafio. Diversos fatores em comum estão por trás desse cenário. Um dos principais aspectos ressaltados por analistas é o Inovar-Auto, programa criado no governo Dilma Rousseff para proteger a indústria automobilística nacional, que termina no fim deste ano. Entre outros pontos, a iniciativa restringiu a importação de veículos de marcas que não possuiam fábricas no País a pouco mais de 4 mil unidades e estabeleceu um pagamento de 30 pontos percentuais adicionais de IPI para quem excedesse essa cota. “As montadoras chinesas competem por preço”, diz Rodrigo Custódio, analista da consultoria Roland Berger. “O programa nivelou os custos dessas empresas com os de seus concorrentes e tornou suas operações no País praticamente inviáveis.” A JAC Motors é um exemplo. Em 2011, seu primeiro ano no Brasil, a empresa vendeu 23 mil carros. Para 2017, a perspectiva é fechar com 5 mil unidades. A Rota 2030, conjunto de regras que irá substituir o Inovar-Auto, é uma das esperanças da companhia e de seus pares para reverter esse quadro (veja o quadro Impasse Regulatório).

Outro elemento que complica a situação é a imagem negativa ainda muito associada às companhias chinesas, expressa na fabricação de cópias mais baratas e de baixa qualidade de produtos de empresas líderes em seus respectivos setores. Professor de branding da pós-graduação da ESPM, Marcos Bedendo entende que essa fase já está sendo superada, em segmentos como eletroeletrônicos. “Mas em setores mais complexos e que têm uma relação muito forte com a qualidade, como o automotivo, esse desafio leva mais tempo”, afirma. O especialista aponta ainda a crise econômica e da própria indústria automotiva como um aspecto que ressalta essa barreira. “As pessoas ficam menos dispostas a arriscar em uma marca nova.” Mesmo para quem decidiu investir nos carros chineses, o histórico de falhas de atendimento em nada contribui para que esses consumidores ajudem a construir uma boa reputação dessas marcas. “Os modelos mais baratos têm um poder de atração, mas ele é limitado”, diz Carlos da Silva, analista da consultoria IHS Automotive. “No fim do dia, a qualidade em questões como distribuição e serviços de pós-venda é que fazem a diferença.” A boa notícia é que, dado os investimentos dos chineses em tecnologia, os carros já estão chegando bem mais sofisticados e competitivos do que há alguns anos. Na edição de outubro da revista Motor Show, o JAC T40 derrotou, num comparativo, os três carros aventureiros mais vendidos no País, inclusive o HB20X, da Hyundai.

Para os analistas, o conhecimento dos atalhos do mercado local e a experiência consolidada nas frentes comercial, de distribuição e de marketing são justamente os pontos que tornam a Caoa uma alternativa viável para a Chery reverter sua trajetória no Brasil. Do ponto de vista da brasileira, o principal benefício apontado no acordo é o acesso a novas tecnologias. “A Chery e outras montadoras chinesas estão apostando alto, por exemplo, em veículos elétricos. O país já tem posição dominante nessa categoria”, afirma Rodrigo Custódio, da Roland Berger.

Impasse regulatório

O governo deve adiar a implementação do Rota 2030, programa industrial para o setor automotivo, que vai substituir o Inovar-Auto. Havia a expectativa de que ao menos parte dele entrasse em vigor ainda este ano. O impasse está em uma possível incompatibilidade de algumas das medidas com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Esse receio ganhou mais evidência a partir do momento em que o governo de Michel Temer passou a priorizar a conclusão do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia – as negociações se arrastam há 17 anos e são consideradas fundamentais para a ampliar a presença dos produtos brasileiros na economia global. A questão é que os incentivos do Rota 2030 podem se tornar mais um obstáculo ao tratado comercial com os europeus. O Rota 2030 coloca como um dos critérios para fazer parte do programa o “apoio ao fomento de etapas fabris” no Brasil.