Pense em Campus Party. Se você for gamer pensará com interesse. Sendo fã de drones, IoT e robótica pensará com euforia. Mas se tem mais de 30 anos pensará com certa nostalgia. E, caso ocupe um cargo de alta gerência ou atue como executivo em qualquer segmento econômico, talvez nem pense nisso (exceto se trabalhar com TI). De certa forma, o evento caiu na mesma cilada de grandes festivais musicais, com vários palcos e 88 atrações das quais apenas iniciados ouviram falar em meio a uma solitária grande banda. É um sucesso, mas nada fica na memória de quase ninguém depois de um mês.

O problema é que mexer numa atração consagrada sem perder o core e ao mesmo tempo revolucioná-la é tarefa difícil. E arriscada, porque deixar moderno, atraente e produtivo um evento de 12 anos – especialmente na área de tecnologia e inovação – é um tanto mais complexo que lançar a mesmíssima nova temporada do Big Brother Brasil. Esse é o desafio da Campus Party, cuja edição nacional 2019 acontecerá em São Paulo, no Expo Center Norte, de 12 a 17 de fevereiro. E quem sabe bem desse desafio é a própria organização do evento. “Desenvolver comunidades sempre foi nosso discurso”, diz o diretor geral da Campus, Tonico Novaes. “Desta vez a gente quer descobrir de verdade quem é cada pessoa lá dentro.” Dessa forma a Campus, sem perder sua gênese, entra nesta edição no espaço que amarra todas as discussões relevantes e atuais sobre tecnologia digital e internet: a individualidade.

Pode-se dizer que em seus primeiros 20 anos de existência a web viveu a Primeira Grande Era, e um binômio a definiu: comunidade & conectividade. Desde que Tim Berners-Lee a inventou, com a importante colaboração de Robert Cailliau, tudo de essencial girou em nome desse corpus social-coletivo. Até mesmo slogans secundários, como web 2.0, tinham no potencial de exploração e interação de volumosas audiências seu motto.

A SEGUNDA GRANDE ERA Hoje o bicho é outro. Começa a ser desenhada a Segunda Grande Era da web, cuja palavra motriz é indivíduo. “A pergunta será: quem é você?”, diz Tonico. E se antes a tecnologia foi usada para multiplicar produtos e serviços pensados para grupos, tema predominante na própria Campus, a guinada pretende começar a trazer outro foco. “O fim é a pessoa, é ela a protagonista, e a tecnologia precisa estar voltada para isso.” Para o bem e para o mal. Não é de graça que privacidade e controle sobre os próprios dados são pautas recorrentes em qualquer evento global sobre tecnologia e ambientes digitais. Não se consegue mais discutir individualidade sem privacidade.

No Brasil, o decisivo passo para o tema foi dado em agosto de 2018, por meio da Lei Geral de Proteção de Dados, que passa a valer em fevereiro de 2020. A pauta circulou no Congresso por oito anos e estabelece responsabilidades sobre a coleta, a manutenção, o uso e, especialmente, os vazamentos de dados pessoais por empresas e governos.

No caso de irregularidades, a lei prevê multas que podem chegar a 2% do faturamento de uma empresa no exercício anterior ou até R$ 50 milhões. Para efeito de comparação, o texto da General Data Protection Regulation (GDPR), versão europeia que serviu de inspiração para a lei brasileira, permite multa de até 4% do faturamento. Mas não está no valor de possíveis multas o maior problema do texto nacional. Havia consenso entre especialistas que a Lei somente ganharia efetividade com uma agência reguladora – criada por Medida Provisória numa das últimas canetadas de Michel Temer, dia 28 de dezembro de 2018.

A questão é que no caso brasileiro a Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD) nasceu vinculada à Presidência da República, e não de forma autônoma. A ANPD poderia ter perfil semelhante ao do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), mas na configuração em que foi concebida ela perde força. O presidente da Associação Brasileira de Agentes Digitais (Abradi), Marcelo Sousa, disse em comunicado que “há o risco de que o cumprimento da Lei tenha interferências políticas e não somente de ordem técnica”. Além disso, a agência, vinculada diretamente à Presidência, flexibiliza o poder de fiscalizar, por exemplo, o próprio Estado e vazamentos de dados em posse de órgãos federais, como os do Enem ou da Receita Federal.

Temas como esse são inevitáveis quando a individualidade vira foco na tecnologia, bem sabem os organizadores da Campus Party. São assuntos que costumam ter influência e exercer interesse sobre uma gama muito maior de pessoas do que múltiplas sessões da tarde para nerds. Estes são como torcedores apaixonados: fieis, eternamente presentes e garantem a bilheteria. Mas há um dilema a caminho: a aclamada agenda de 1.000 horas de conteúdo e 900 palestrantes pode mais pulverizar que pluralizar. Por esse motivo a ideia é cada vez mais amarrar inovação, games, robótica ou qualquer outra questão a mais personas. São desafios poderosos, que pedem decisões equilibradas. Não é fácil lacrar por tanto tempo, Campus Party.