Foi com um post de 242 palavras no Linkedin que Bill Gates anunciou, na sexta-feira 13, a saída do conselho de administração da Microsoft — empresa que fundou há 45 anos com o amigo de infância Paul Allen (1953-2018) . Oficialmente, é o fim da relação entre criador e criatura. Ele tomou a decisão para “dedicar mais tempo às atividades filantrópicas, que incluem o desenvolvimento global, a saúde, a educação e meu compromisso crescente no combate às mudanças climáticas”. Na prática, continuará por perto, como consultor da gigante de tecnologia. Até mesmo usar o Linkedin para seu anúncio não é coincidência. A plataforma é da Microsot. Foi comprada em 2016 por US$ 26,2 bilhões.

Gates pode mudar de cadeira, mas não muda de persona. Ao fazer a postagem em sua — literalmente — rede social, o segundo homem mais rico do planeta (patrimônio de US$ 99,8 bilhões) lamentou também deixar o conselho de administração da Berkshire Hathaway, holding de seu amigo e também bilionário Warren Buffett (quarto mais rico do mundo, com US$ 71,3 bilhões). A filantropia pode ter invadido seu coração, mas sua alma estará sempre atrelada ao mundo dos negócios. “Continuarei envolvido com Satya [Nadella, CEO da Micrsofot] e a liderança técnica para ajudar a moldar a visão e a atingir os objetivos ambiciosos da empresa”, escreveu no Linkedin. Reparem que usou a palavra “ambicioso”, e no plural.

GESTOR IMPLACÁVEL Gates (acima, em 1983, aos 28 anos), tornou universal e onipresente os principais produtos da Microsoft, o que rendeu uma batalha com a Justiça americana por violações a leis antitrustes. (Crédito:Divulgação)

A despeito da aparência quase frágil, ele sempre foi conhecido por práticas comerciais implacáveis que levaram a Microsoft e o Departamento de Justiça a uma longa briga de 13 anos (1998-2011) em que a companhia foi condenada por violar a lei antitruste. Brigas à parte, foi seu estilo de gestão que fez do Windows e do Office marcas onipresentes em casas e empresas do mundo todo e do Internet Explorer o navegador líder — até ser destronado pelo Chrome, do Google. Gates, aliás, nunca explicitou, mas também nunca escondeu, que seu inimigo é a companhia de Larry Page e Sergei Brin. Em junho de 2019, afirmou que o maior erro de sua vida foi deixar o Android escapar. “Só há espaço para um sistema operacional que não seja Apple. Quanto isso vale? Vale US$ 400 bilhões, que saíram da companhia M para a companhia G”, disse, referindo-se à compra do Android pelo Google em 2005, por US$ 50 milhões.

Quem nunca deixou escapar US$ 400 bilhões? Diferentemente dos mortais, Gates seguiu — como sempre — em frente. Muito em frente. Sua sina. Aos 22 anos, recém-saído de Harvard, ele e o amigo Paul Allen criaram (em abril de 1975) a Microsoft, em Albuquerque (Novo México). Ali uma empresa de microcomputadores, a Mits, fabricava o Altair 8800, dispositivo frequentemente creditado como o primeiro computador pessoal. O produto inaugural da Microsoft foi uma versão da linguagem de programação Basic para o Altair. Algo como transformar o idioma altamente técnico e destinado a iniciados da computação em língua acessível para leigos. Dois anos mais tarde (agosto de 1977) a Microsoft já operava no Japão, numa prova de que de nerd inocente Gates não carregava um gene.

SUCESSORES A empresa viveu nas duas décadas seguintes um acelerado processo de crescimento que culminou, no fim dos anos 1990, numa série de investigações antitruste. Essa batalha — perdida — nunca foi bem aceita por Gates. No ano passado, perguntado se o processo tornara o mercado de tecnologia mais competitivo, ele foi lacônico: “Não.” Afastar-se efetivamente da liderança da corporação não foi algo indolor. Entre 2000 e 2014 o comando da companhia esteve com Steve Ballmer, cujos acertos (nortear a empresa para serviços mais que para produtos) e erros (desdenhar do iPhone, que fez a marca perder espaço considerável no campo da mobilidade) levaram a uma discussão de relacionamento entre os dois. Ele e Ballmer precisaram se esforçar para fazer a convivência funcionar. Por isso Gates deu mais espaço de atuação ao atual CEO, Satya Nadella, que assumiu há seis anos no lugar de Ballmer e avançou em serviços na nuvem.

Hoje o valor de mercado da Microsoft chega a US$ 1,1 trilhão (terça-feira 17), junto da Apple e à frente de Amazon (US$ 903 bilhões) e Google (US$ 750 bilhões). Gates sozinho tem mais de 100 milhões de ações da empresa, cerca de 1,36%, segundo a platafiorma FactSet, o que faz sua participação apenas nela somar US$ 15 bilhões. Parte considerável de sua fortuna pessoal quase sete vezes maior tem sido destinada à Fundação Bill & Melinda Gates, uma das maiores organizações sem fins lucrativos do mundo, que comanda com a mulher. A ONG acaba de comprometer US$ 100 milhões para combater o coronavírus — no começo do ano já havia destinado US$ 10 milhões. Na empreitada filantrópica, ele convenceu o amigo Buffett a doar boa parte de sua fortuna à organização. “Gates tem um foco obsessivo”, afirma Jeff Raikes, que já presidiu a fundação. Por isso não surpreende que queira orientar essa energia para a filantropia. Afinal, aguém capaz de tirar dinheiro do velho Buffett é capaz de qualquer tarefa.