Um homem obcecado representa um problema para as pessoas que o cercam. Se esse homem for o presidente dos Estados Unidos e a sua obsessão for derrubar um ditador no Oriente Médio o problema se transforma em risco mundial. ?Enquanto terroristas e ditadores fizerem planos contra nossas vidas e nossa liberdade, eles serão confrontados?, avisou George W. Bush na quarta-feira. O presidente americano está tomado pela idéia de que atacar o Iraque é necessário, urgente e imprescindível à sobrevivência moral e física do seu país. Ninguém mais acredita nisso fora de um círculo restrito de seus colaboradores, mas não importa. Recoberta por uma fina camada de racionalidade, a decisão de Bush de fazer guerra a Sadam Hussein a qualquer custo parece ter causas mais viscerais.

 

A primeira é a percepção orweliniana de que a guerra é capaz de unir atrás de um presidente fraco um país que em condições normais ele não conseguiria conduzir. No livro 1984 George Orwell cria um mundo-pesadelo dividido por três superpotências que se revezam em guerra permanente. A única finalidade da carnificina é manter sob constante fervor patriótico as massas idiotizadas pela propaganda oficial. Um pouco dessa intenção pôde ser percebida nas cerimônias de quarta-feira, que marcaram o aniversário do 11 de setembro. Bush peregrinou pelos três locais atingidos ? o Pentágono, Nova York e o local da zona rural na Pensilvânia onde caiu o terceiro avião tomado pelos terroristas ? e ao final do dia fez um discurso na televisão avisando que os EUA não permitiriam que ?nenhum tirano? voltasse a atacar o país. A trôpega retórica telepronter do presidente mal escondia a manipulação emocional e a falsificação dos fatos. Afinal, não há tirano conhecido por trás do 11 de setembro e o único responsável identificado é um terrorista independente que segue à solta. Orwell não faria melhor.

Outro motivo ainda menos confessável para o cerco ao Iraque é o petróleo que se acumula no país. Suas reservas são de 130 anos contra apenas oito anos das reservas em subsolo americano. Mais ainda, o petróleo iraniano se extrai a preço de banana: 3 centavos de dólar o barril, o menor preço do mundo. No Brasil o preço de extração por barril é de 12 dólares. É claro que interessa estrategicamente aos EUA ter no governo do Iraque um ditador ou democrata amigo. Assim como interessa às companhias americanas de petróleo a confusão e a alta de preços que se seguiriam a um ataque a Bagdá. É bom ter em conta que as companhias petrolíferas estiveram entre as grandes financiadoras da campanha de Bush e que seu vice belicoso, Cheney, é oriundo do mesmo setor da economia. ?A maior ameaça à economia mundial é essa guerra ao Iraque?, resume o professor Otaviano Canuto, da Unicamp. ?Os preços do petróleo podem explodir e arrastar o mundo à recessão.? O presidente americano não parece estar se importando com isso. Mais forte parece ser o impulso freudiano de concluir a tarefa que seu pai não foi capaz de levar a cabo em 1990. Ao final da Guerra do Golfo os militares americanos convenceram Bush Pai de que derrubar Sadam custaria muitas vidas e poderia desestabilizar a região. Ele assentiu, mas desde então não parou de se explicar. Bush Filho parece querer redimir a culpa paterna, embora as circunstâncias não tenham se alterado. As perdas humanas de um ataque terrestre seriam imensas e a invasão, nas palavras de um príncipe saudita, ?abriria as portas do inferno? numa região extremamente instável. Bush, entretanto, persiste. Contra ele está Colin Powell, o general-secretário de Estado americano. Contra ele estão todos os países importantes do mundo, à exceção da Grã-Bretanha de Tony Blair, que parece ter abandonado qualquer pretensão a uma política externa independente. Contra Bush estão os aliados árabes na Guerra do Golfo e no ataque ao Afeganistão. Contra Bush está o próprio Bush Pai, a quem os anos ensinaram cautela. A favor da guerra estão os falcões da direita, os interesses empresariais escusos e as pulsões interiores de um presidente mentalmente simples que parece enxergar o mundo como se estivesse num filme americano.

 

?A atitude dos Estados Unidos é uma ameaça à paz do mundo?, reagiu o ex-presidente Nelson Mandela, patriarca do regime multirracial da África do Sul e um dos grandes estadistas vivos. ?Isso é claramente uma decisão motivada pelo desejo de George Bush de agradar as indústrias americanas de armas e de petróleo.? O chanceler brasileiro Celso Lafer abriu a Assembléia da ONU na quinta-feira 12 deixando clara também a aposição brasileira aos planos americanos. ?O uso da força em nível internacional só é admissível quando todas as alternativas diplomáticas se esgotarem?, disse. É improvável que o discurso da razão consiga deter Bush em sua cruzada antiterrorista. Os jornais e revistas americanos têm acompanhado o debate no interior da Casa Branca e já não há dúvida sobre a inclinação de Bush pelo grupo minoritário de ultra-direita que defende o ?ataque preventivo? ao Iraque. Esse grupo é liderado pelo vice-presidente Dick Cheney e pelo secretário de Defesa Ronald Rumsfeld. Eles têm vendido ao público ? sem qualquer respaldo militar ? a urgência de remover o ditador antes que ele desenvolva armas nucleares ou químicas com as quais seus aliados terroristas possam atacar os Estados Unidos. O problema com essa versão é que não há evidência de que Sadam detenha armas de destruição de massa ou esteja prestes a obtê-las. Tampouco se provou qualquer ligação entre Sadam e a Al-Qaeda de Osama Bin Laden, responsável pelos atentados de 11 de setembro de 2001. ?O primeiro momento em que poderemos estar completamente certos de que Sadam tem armas nucleares será quando ele as usar?, justifica Bush.

Bush parece querer vencer onde seu pai falhou, no Iraque

Na quinta-feira, ao discursar perante a Assembléia das Nações Unidas, o presidente gastou oito páginas de um discurso de 10 páginas para demonizar o presidente do Iraque e pedir apoio da ONU para derrubá-lo. Ao final, ameaçou: ?Nós vamos trabalhar com o Conselho de Segurança para obter as resoluções necessárias, mas se o regime iraquiano nos desafiar o mundo precisa se mover decisivamente?. Em seu discurso de acusação a Sadam, Bush não lembrou que no passado ele foi um fiel aliado dos Estados Unidos e que o ataque do Iraque ao Irã, em 1980, foi armado e incentivado pelos EUA. Também não disse que em 1990 Sadam avisou a embaixadora americana no Iraque de que iria invadir o Kuwait. Nem mencionou que o ditador controla uma nação de apenas 24 milhões de habitantes, cujo PIB é de somente US$ 12 bilhões e que detém o pior Índice de Desenvolvimento Humano do planeta. Já os EUA gastam US$ 300 bilhões apenas em seu orçamento militar, o dobro do que gasta em armas o resto do mundo. Isso é suficiente para jogar US$ 13 mil em bombas sobre cada iraquiano vivo ? homem, mulher e criança. À frente dessa munição, está um homem que enlouqueceu.