O presidente Jair Bolsonaro dedicou seu primeiro ano de governo a “libertar” o Brasil da esquerda e do “globalismo” e pretende ser reeleito em 2022 para construir um país “respeitoso da religião” e do direito de portar armas.

“Eu sempre sonhei em libertar o Brasil da ideologia nefasta de esquerda (…). Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer”, declarou Bolsonaro durante uma visita a Washington em março.

“Que eu possa ser pelo menos um ponto de inflexão, [assim] já estou muito feliz”, acrescentou.

Em setembro, quando incêndios na Amazônia causaram alarme global, o presidente, um cético das mudanças climáticas, alertou a ONU de que ele não tinha nada que fazer no Brasil.

“Não estamos aqui para apagar nacionalidades e soberanias em nome de um ‘interesse global’ abstrato. Esta não é a Organização do interesse global”, proclamou ante a Assembleia Geral da ONU.

Bolsonaro, 64 anos, assumiu o cargo em 1º de janeiro e, desde então, são raros os meses sem renúncias ou demissões por razões ideológicas nos ministérios ou agências estatais.

Os setores mais pragmáticos de seu entorno – mercado financeiro, lobby do agronegócio e líderes militares – tentam limitar a influência das igrejas neopentecostais, do guru da extrema direita Olavo de Carvalho e dos três filhos mais velhos do presidente, que agitam o país via Twitter

O governo “tem um lado sombrio e tem um outro que é iluminado. O lado sombrio tem feito muito estripulia, mas não tem conseguido atrapalhar de forma eficiente o lado iluminado”, explicou à revista o ex-ministro da Fazenda, Antônio Delfim Neto.

“Este é um governo liberal na economia e antiliberal na política”, define com menos lirismo Marcos Nobre, professor de filosofia da Universidade de Campinas e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

– Estratégia do caos –

Bolsonaro, admirador confesso da ditadura (1964-85), prometeu não buscar a reeleição, mas em junho declarou que “se o povo quiser, serão mais quatro anos”.

“Se tiver uma boa reforma política eu posso até nesse caldeirão jogar fora a possibilidade de reeleição. Agora se não tiver uma boa reforma política e, se o povo quiser, estamos aí para continuar mais quatro anos”, afirmou Bolsonaro na ocasião.

Essa campanha prematura mantém sua base mobilizada, diante de uma esquerda enfraquecida e dividida.

A estratégia parece eficaz: depois de uma perda inicial de popularidade, o eleitorado agora se mostra dividido em três partes iguais, entre quem considera seu governo bom, regular ou ruim.

E uma pesquisa da FSB/Veja mostrou este mês que Bolsonaro só seria derrotado por… seu ministro da Justiça, Sérgio Moro, o símbolo da Lava Jato que enviou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a cadeia por corrupção.

“Bolsonaro é um presidente anti-establishment, antissistema, então quando ele perde não é uma derrota. Pelo contrário, aumenta (a ideia) de que ele está tentando mudar o sistema, mas o sistema não o deixa mudar”, explica Nobre.

O acadêmico afirma que Bolsonaro recorre ao “caos como método” e que seu objetivo é “instaurar um regime autoritário”.

“Existe uma clareza hoje, para qualquer pessoa que acompanhe de perto a política, que o Bolsonaro de fato tem o objetivo de instalar um regime autoritário. A questão é que ele não tem condições de fazer isso”, explica.

“A eleição de Bolsonaro foi uma confluência de fatores muito acidental. Se ele se reeleger, já não será mais acidental, e aí a gente já tem de fato um projeto se estabelecendo no país”, alerta.

Bolsonaro e seus filhos frequentemente testam os limites do sistema.

O deputado Eduardo Bolsonaro, por exemplo, disse em outubro que “se a esquerda radicalizar, vamos precisar dar uma resposta. E essa resposta pode ser via um novo AI-5 (…) uma legislação aprovada via plebiscito”, referindo-se ao decreto que, em 1968, fechou o Congresso.

Em novembro, Bolsonaro fundou seu próprio partido, o Aliança Pelo Brasil (APB), que proclama “respeito a Deus e à religião”, a “defesa da vida desde a concepção” e a legalização do porte de armas.

Se concluir a tempo o registro ante a justiça eleitoral, a APB poderá estrear nas eleições municipais de 2020.

– Choque de realidade –

Outros analistas veem a agitação permanente do presidente como uma confissão de impotência.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, conseguiu a aprovação da reforma da Previdência, a primeira de um programa de ajustes. Mas a economia demora a decolar e o desemprego a diminuir.

Outras promessas de campanha – como flexibilização do porte de armas ou o excludente de ilicitude para policiais durante operações – foram rejeitadas pelo Congresso ou interrompidas pelo Supremo Tribunal Federal.

O medo do setor agrícola de perder mercados na Ásia e no Oriente Médio forçou Bolsonaro a diminuir o tom contra a China comunista e adiar a mudança para Jerusalém da embaixada brasileira em Israel.

E sua vontade de se alinhar a Donald Trump sofreu um revés em novembro, quando o presidente dos Estados Unidos anunciou tarifas para importações de aço e alumínio do Brasil e da Argentina.

Bolsonaro conseguiu, no entanto, colocar figuras radicais na vanguarda da educação e da cultura, a fim de combater a “ideologia de gênero” e promover “obras patrióticas”.

“Bolsonaro sofreu um choque de realidade. Tudo o que resta de seu discurso extremista é o ataque aos intelectuais, contra um inimigo que não tem poder econômico para enfrentá-lo”, analisa Jean-Jacques Kourliandsky, diretor do Observatório América Latina da Fundação Jean Jaurès, na França.