Assim como ocorreu no futebol, o Brasil está comprovando a tese de que tradição não ganha jogo no campo da diplomacia. Depois de assistir passivamente à decisão do novo presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o americano Maurício Claver-Carone, de retirar o País da vice-presidência do órgão, o governo brasileiro pode sofrer mais uma derrota: ficar sem direito a voto na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Para que isso não ocorra, será preciso quitar uma dívida de US$ 113,5 milhões até o dia 31 de dezembro. É uma vergonha. Do total de 193 países-membros da ONU, apenas a Venezuela foi proibida de participar das votações em 2020, já que Nicolás Maduro não fez os pagamentos — segundo ele, culpa das sanções impostas pelos Estados Unidos. Além do Brasil, apenas São Tomé e Príncipe, Somália e Ilhas Comores possuem dívidas em aberto com as Nações Unidas.

Para agravar a lista de vexames a que submete o País, Bolsonaro resolveu radicalizar o discurso contra a China, maior parceiro comercial do Brasil, e atacar boa parte da comunidade europeia. O bloco têm irritado o capitão motosserra ao se posicionar contra o desmatamento e as queimadas na Amazônia.

Na terça-feira (17), durante sua fala na reunião virtual do Brics — formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul —, Bolsonaro afirmou que revelará nos próximos dias a lista de países que compram madeira ilegalmente do Brasil. França, Inglaterra e Itália estariam entre eles. Como resposta, recebeu a pecha de “delirante, negacionista e frustrado”. A exceção foi o russo Vladimir Putin, que atribuiu ao brasileiro as “melhores qualidades masculinas”.

NOVO ALIADO O líder russo Vladmir Putin elogiou as qualidades masculinas de Bolsonaro no encontro em que o brasileiro foi descrito como “delirante e frustrado”

As críticas a Bolsonaro empurram o Brasil para fora da diplomacia internacional que sempre permeou nossa história. Para o economista João Costa Filho, especialista em direito e relações internacionais da Fundação Getulio Vargas, as situações recentes aumentam a probabilidade de o Brasil deixar de ter voz na ONU. Uma derrocada histórica, já que o País é referência dentro da instituição há décadas. Para citar só um exemplo: foi com Osvaldo Aranha presidindo a Assembleia Geral da ONU, em 1947, que foi criado o estado de Israel. Para o economista, caso consumada, a exclusão irá coroar “uma gestão catastrófica no campo internacional”. A perda do direito a voto atinge todos os conselhos da ONU dos quais o Brasil faz parte, entre eles o Econômico e Social e o de Direitos Humanos. Uma preocupação no Itamaraty, comandado pelo ministro Ernesto Araújo, é com a candidatura brasileira a um assento no Conselho de Segurança. Em 2021, o Brasil deveria entrar em campanha diplomática para voltar ao colegiado no biênio 2022-2023.

CULPA DA CHINA Durante a reunião com os líderes do Brics, Bolsonaro aproveitou seu espaço de fala para alfinetar a China. Sem apresentar nenhum fato, ele repetiu os mesmos argumentos usados por Donald Trump para sustentar a guerra comercial que trava com o gigante asiático. Segundo Bolsonaro, os chineses estariam montando um complô para ter o domínio tecnológico e de inteligência sobre as demais nações. Na mesma toada, o brasileiro criticou o papel da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Já o discurso do presidente da China, Xi Jinping, foi na direção oposta. Ele defendeu ações ambientais e o Acordo do Clima de Paris. Pediu ainda proteção ao multilateralismo e à ONU. Indiretamente, citou o acordo de seu país com o governo do estado de São Paulo para o fornecimento da Coronovac, a vacina chinesa contra a Covid-19. Ao contrário de Xi Jinping, que gastou parte de seu tempo falando da importância das relações comerciais como forma de evitar guerras e conflitos, Bolsonaro ressaltou a soberania nacional como prioridade no pós-pandemia.

DIREÇÃO OPOSTA Ao contrário do que fez Bolsonaro, o presidente chinês Xi Jinping defendeu ações ambientais, o Acordo do Clima de Paris e as relações comerciais como forma de evitar guerras e confiltos.

Se residia nos Estados Unidos o único aliado de Bolsonaro entre os líderes mundiais, Bolsonaro agora ficará sozinho contra o mundo. Com o democrata Joe Biden fincando os pés na Casa Branca, Donald Trump passa a ser um cidadão comum. O fim da era Trump enterra também um eventual protagonismo brasileiro no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Maior captador de recursos do órgão internacional de financiamento de infraestrutura, o Brasil se tornou em setembro apenas um cliente regular. Cedeu a presidência do banco para o norte-americano Maurício Claver-Carone e tomou outra rasteira ao não receber sequer uma cadeira na vice-presidência.

Para Elen Gusmão, professora de relações internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a situação espelha o atual governo. “Não temos nenhum valor internacional neste momento”, afirmou. Para ela, nossa imagem é a do elefante na sala. “Todos sabem do tamanho do problema, mas ninguém quer tocar no assunto.” Se serve de consolo, há um entendimento global de que após a derrota de Trump, a onda Bolsonaro irá passar.