É como se William Rhodes, do Citibank, passasse a alertar sobre os efeitos daninhos da concentração bancária. Ou se Rupert Murdoch, da Fox, denunciasse os riscos da massificação cultural pela televisão. Quando Bill Joy, um dos fundadores da Sun Microsystems, lançou-se numa campanha contra tecnologias que considera apocalípticas, todo mundo estranhou. Afinal, o homem é um dos pioneiros da Internet, com responsabilidade direta pela criação da linguagem Java, um dos pilares da rede como ela é hoje. Não é o tipo de pessoa de quem se espera desconfiança em relação à ciência. Pois Joy começou a dizer que a evolução vertiginosa dos computadores, aliada às descobertas na engenharia genética, está criando a possibilidade de produzir formas de vida letais para a humanidade ? e que é necessário impedir que isso aconteça, ainda que através da renúncia a certas áreas de pesquisa. O cientista-chefe da Sun também jura que o mundo está caminhando para a construção de robôs capazes de pensar e se replicar, e que ninguém está discutindo as implicações dessa aventura. Seu alerta foi publicado na vanguardeira revista Wired, em abril passado, com o título dramático de ?O futuro não precisa de nós?. Tornou-se desde então o grande assunto na Internet.

Aos 46 anos, Joy não é um sujeito muito convencional, como, aliás, deixam claro os sapatões que ele está usando na foto ao lado. No início do mês passado, durante a reunião do Fórum Econômico Mundial de Davos, ele apareceu vestindo calça e colete de couro avermelhados, e foi o centro das atenções nos debates sobre ciência. Enquanto as pessoas falavam, fechava os olhos, esticava as pernas enormes e ficava dando nós nos cabelos. Aliás, o corte recente de roqueiro-grisalho lhe confere o toque definitivo de Dom Quixote digital. Casado e pai de dois filhos, Joy vive no Colorado, um dos Estados mais ecologicamente corretos da federação americana. Até a publicação do manifesto, era apenas outro tecnobilionário da Internet. Agora, converteu-se numa celebridade, ridicularizado por alguns e tratado por outros como visionário. Os cientistas esnobaram os argumentos de Joy como ?amadorísticos? e a turma dele, no Vale do Silício, deu de ombros. Mas muita gente acha que seu pessimismo é uma contribuição corajosa à ética científica.

O manifesto que produziu tanta fama é fraco: mais alarmista do que consistente, mais impressionista do que informativo. Parece ter sido escrito por alguém que leu meia dúzia de livros, metade deles de ficção científica. Joy fala de coisas como a robotização de seres humanos e a transferência do trabalho para máquinas auto-replicáveis, como se o futuro fosse um livro de Isaac Asimov. A dimensão antropológica da sua análise restringe-se à cultura high tech americana e não há no manifesto uma única menção ao mundo econômico além das Montanhas Rochosas. Quando escreveu seu Manifesto Comunista, em 1848, Marx era o maior estudioso vivo do capitalismo. Joy admite não ser especialista em nenhuma das três disciplinas que quer banir: engenharia genética, nanotecnologia e robótica. Ninguém duvida que ele é um cara legal e que suas intenções são as melhores, mas não há gente qualificada que o leve a sério. Por ora.

AS PALAVRAS DE JOY

 
  

Por ser americano e viver imerso no mundo da informática, o sr. não superestima o ritmo das mudanças tecnológicas?

?Ao contrário, eu acredito que existe ampla evidência de que está ocorrendo uma mudança tecnológica rápida e incontrolável, e isso não deveria ser surpresa para ninguém. Durante a maior parte do século 20 as pessoas previram essa mudança.?

O sr. realmente acha que países como China e Índia estão a caminho da robotização?

?Não. Das três tecnologias sobre as quais eu tenho falado ? engenharia genética, nanotecnologia e robótica ? acredito que a engenharia genética está despontando agora, e vai explodir nos próximos 20 anos. Essa tecnologia vai afetar os países que você menciona. As mudanças começam agora e se tornarão crescentemente dramáticas. Já a nanotecnologia eu estimo que está 10 anos atrasada. Robótica será a última da lista. O equivalente moral do Projeto Genoma em robótica ainda vai demorar talvez uns 20 anos ? será um robô que poderá trabalhar em casa como faxineiro, autonomamente, ainda que seja inconsciente.?

Existe alguma contradição entre seu papel como pesquisador da Sun Microsystems e as suas desconfianças em relação à tecnologia?

?Eu estabeleci algumas regras pessoais de conduta para guiar a minha atuação. Eu já avisei que não irei trabalhar com nanotecnologia ou com eletrônica molecular, porque eu considero que essas são áreas que apresentam risco ? além do fato óbvio de que eu não estou qualificado para trabalhar em biologia computacional ou robôs. Em algum momento no futuro, eu posso decidir que não devo mais trabalhar na indústria de computadores, mas, por ora, eu acho que o meu trabalho em computação faz mais bem do que mal. Mas eu estou reavaliando isso constantemente.?