Quem anda por Buenos Aires se surpreende com a quantidade de obras na cidade. Um dos maiores símbolos da ainda pouco efetiva política de reconstrução do presidente Mauricio Macri, os canteiros dominam desde o entorno da histórica Praça de Maio, passando pelo já modernizado bairro de Puerto Madero, pelas vielas boêmias de San Telmo e até pela avenida Corrientes, conhecida por seus sebos, livrarias e teatros. Nos próximos meses, um novo projeto dará, literalmente, nova cor a essa paisagem urbana: o EcoBici, sistema público e gratuito de bicicletas compartilhadas. Criada em 2010, a iniciativa entra em uma nova fase, depois de uma licitação vencida pela startup brasileira Tembici. Com patrocínio do Itaú e da Mastercard, as bicicletas laranjas do serviço estão nas ruas da capital portenha desde a segunda-feira 25.

Depois de ocupar 16 cidades brasileiras, a Tembici inicia agora sua expansão internacional. Além de Buenos Aires, a empresa estreou em Santiago, no Chile, no início de fevereiro, depois de adquirir a Bike Santiago, companhia que respondia pelos serviços de bicicleta compartilhada em 14 das 33 comunas da capital. Para tocar as duas operações, a startup vai desembolsar US$ 120 milhões. “Nós temos um caminho enorme para explorar. Toda cidade da América Latina tem desafios e problemas de mobilidade urbana”, diz Tomás Martins, 32, CEO e cofundador da Tembici. “Hoje, estamos atacando a América Latina. Mas nunca colocamos um limite para o nosso crescimento”, afirma Maurício Villar, 34, diretor de operações e cofundador da empresa.

MODELO Com duração de dez anos, a licitação da Argentina é considerada um modelo para impulsionar a expansão da companhia no país e na América Latina. “O que acontece aqui é um espelho para as demais cidades e também para a região”, diz Mariel Figueroa, gerente-geral da empresa na Argentina. “Nosso objetivo é triplicar o uso do sistema na cidade.” Quando o serviço foi criado, em 2010, a participação das bicicletas como complemento nos modais de transporte de Buenos Aires era de 0,4%. Hoje, esse índice é de 4%. Até então, eram 200 estações e 300 mil usuários cadastrados, responsáveis por uma média diária de 14 mil viagens. A rede de ciclovias do município tem hoje 227 quilômetros. Em 2019, o plano é chegar a 250 quilômetros.

Nessa nova etapa, o número de estações chegará a 400 até o fim de junho. E o alcance passará de 22 para 38 bairros, com 4 mil bikes disponíveis. “As bicicletas são um eixo fundamental de uma mobilidade sustentável que pensamos para o futuro”, afirma Juan José Mendez, secretário de transporte de Buenos Aires. Ele destaca o custo de 60 milhões de pesos (R$ 5,7 milhões) do novo sistema. “É praticamente a metade do custo do sistema anterior, com o dobro da capacidade.” O projeto da Tembici envolve a reformulação total do modelo até então adotado. Com fabricação própria em Extrema (MG), as bicicletas possuem tecnologia embarcada da empresa canadense PBSC e são desenhadas especificamente para esse tipo de serviço, com materiais reforçados e mais robustos. Já as estações são modulares e portáteis, o que facilita a expansão de acordo com a demanda, além de trazerem recursos mais sofisticados de conexão de internet e de segurança. Em São Paulo, onde a startup opera 240 estações, o formato foi responsável pela redução das taxas de vandalismo de 10% para 0,5%, segundo a companhia.

Com duração de dez anos, o projeto de Buenos Aires envolve a instalação e a gestão de 400 estações e 4 mil bicicletas (Crédito:Divulgação)

SANTIAGO O mesmo processo de transição está sendo conduzido em Santiago. Na capital chilena, os contratos têm duração de sete anos. Até maio, serão instaladas 350 estações, com 3,5 mil bicicletas. O sistema, no entanto, é custeado por assinaturas. Hoje, a média diária na cidade é de 1,5 viagem por dia. “O plano é chegar ao nível de cidades como o Rio de Janeiro, entre 8 e 9 viagens”, observa Bruno Loução, gerente-geral da Tembici para a América Latina. Ele projeta um time de 200 funcionários na região até o fim do ano. A empresa conta hoje com cerca de 800 profissionais. “Nosso maior desafio é fazer esse salto para um comportamento de gente grande sem perder a nossa cultura de startup.”

A escalada da Tembici coincide com o aumento da incorporação de bicicletas no modal das grandes cidades. Mais empresas começam a olhar para esse mercado, cuja projeção é movimentar US$ 8 bilhões globalmente em 2021, segundo a consultoria Roland Berger. A lista inclui nomes como a brasileira Grow, fruto da fusão entre a Yellow e a Grin, e gigantes como o Uber, que comprou, no fim de 2018, a Jump, especializada nesse modelo.

Em um contraponto a esses nomes que receberam aportes milionários de fundos de investimento, a Tembici pedala com as próprias pernas. Foi assim desde o início, em 2012, quando Martins e Villar se conheceram e decidiram tocar um negócio que tivesse um impacto efetivo na vida das cidades, mas que, ao mesmo tempo, fosse sustentável financeiramente. O primeiro estava envolvido em um projeto de bikes compartilhadas patrocinado pela Porto Seguro. Villar, por sua vez, havia criado o Pedalusp, iniciativa embrionária no entorno da USP. Sua picape como garantia de um empréstimo foi o pontapé para as primeiras aventuras da dupla.

O contrato inicial foi assinado no fim do mesmo ano, para a instalação de seis estações na Riviera de São Lourenço, em Bertioga, litoral de São Paulo. “Nossa ideia era preparar o lançamento no dia 23 de dezembro e voltar para São Paulo, para passar o Natal com a família. Nós só retornamos em abril”, relembra Martins, às gargalhadas. De lá para cá, todos os passos da startup foram dados com recursos próprios, com exceção da aquisição da Samba, em 2017, que operava projetos em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Parte do acordo foi financiada pelo fundo Joá Investimentos.

Com receitas que incluem frentes como as assinaturas dos serviços, patrocínios e a exploração de publicidade nas bicicletas, a Tembici parece não temer a concorrência. “Essa ainda é uma cultura nova e essas empresas trazem novos usuários para o mercado”, diz Villar. Além do financiamento, o modelo de operação da companhia também difere de boa parte das suas rivais, que apostam em quantidades substanciais de bikes e em sistemas sem estações, os chamados dockless. Essa abordagem tem rendido críticas em países como a China, onde é comum ver montanhas de bicicletas de serviços nesses moldes abandonadas pelas ruas. “A média mundial em dockless é de 0,8 viagens por dia. É um ativo que não gira”, afirma Martins. Hoje, a empresa tem 8 mil bicicletas no País, responsáveis por uma média mensal de 1 milhão de viagens. Com a incorporação da América Latina ao mapa, a projeção é ampliar em quatro vezes esse número em 2019. “O impacto real é a taxa de uso da bicicleta, no dia a dia, integrada ao transporte. Queremos ser a opção barata, viável e confiável para que essa transformação aconteça.”