Foi com um silêncio repentino que a Balenciaga marcou seu retorno à alta costura após 53 anos. O ateliê da grife na prestigiosa Avenue George V, em Paris, estava repleto de celebridades e profissionais do setor quando o primeiro modelo começou a desfilar pelos cômodos usando um costume preto. O burburinho cessou e durante quase 15 minutos só se ouviam os passos dos modelos e o som dos tecidos — da lã dos ternos ao jeans das calças e o cetim das estolas. Para os amantes da moda, foi um momento de pura poesia.

A ausência de trilha sonora, elemento essencial nos desfiles modernos, foi apenas uma das referências diretas da grife ao tempo em que seu fundador, Cristóbal Balenciaga (1895-1972), abandonou a alta costura, em 1968. O espanhol, admirado por Coco Chanel e por Christian Dior, que se referia a ele como “o mestre de todos nós”, não queria se adequar às regras da alta costura da década de 1960 e resolveu sair de cena . Mas sua visão aparece preservada — e modernizada — nesse retorno. “A Balenciaga é uma das poucas grifes tradicionais que não descaracterizou o que seu criador original havia imaginado”, afirmou Madeleine Muller, professora de design de moda na ESPM. “Todos os códigos visuais e as silhuetas estão presentes, mas com uma perspectiva contemporânea.”

Divulgação A INSPIRAÇÃO O rapper e designer Kanye West assiste ao desfile escondido sob uma máscara. Em suas coleções ele reverencia as grifes tradicionais. (Crédito:Divulgação)

Esse olhar para o passado da marca, que retornou à ativa em 1986 com coleções pret-à-porter e hoje faz parte do conglomerado Kering, é uma característica do trabalho de Demna Gvasalia. O designer georgiano assumiu a posição de diretor criativo da Balenciaga em 2015, após passagens pela Maison Martin Margiela e Louis Vuitton. Nos últimos seis anos, ajudou a transformar a grife em uma das principais referências da moda contemporânea ao prestar atenção nas ruas e nas demandas do público.

Tradicionalmente, grandes nomes da moda colocam seus produtos no mercado confiantes de que o nome na etiqueta é suficiente para gerar desejo nos consumidores. Durante muito tempo essa estratégia funcionou. Agora, a situação está mudando. Gvasalia percebeu a transformação e inverteu essa lógica, estabelecendo um canal de diálogo. O estilista ajudou a resgatar o interesse pela jaqueta puffer, que se tornou um item obrigatório nos guarda-roupas, e seus sneakers ousados conquistaram o público ligado ao streetwear e hoje fazem parte da indumentária de astros da NBA e de rappers. “As marcas centenárias só vão sobreviver se enxergarem os contextos, dialogarem com os consumidores e ouvirem as demandas, algo que não faziam antes”, disse Madeleine Muller.

Daniel Leal-Olivas O DESIGNER Demna Gvasalia, atual diretor criativo, tem democratizado a grife de olho em um público mais jovem. (Crédito:Daniel Leal-Olivas)

A estratégia também tem dado resultado financeiro. Dentro do grupo Kering, grifes como Gucci, Yves Saint Laurent e Bottega Veneta são responsáveis pela maior parte das vendas. No primeiro trimestre de 2021, a Gucci sozinha registrou uma receita de 2,1 bilhões de euros. Embora não divulgue os números de cada grife, o conglomerado afirmou que as vendas da Balenciaga no período foram “excelentes” e contribuíram para a receita de 714 milhões euros anotada pelo segmento de “outras marcas”, que inclui a joalheria Pomellato e a grife Alexander McQueen.

INFLUÊNCIA Justamente por causa desse sucesso financeiro é que o retorno da Balenciaga à alta costura foi tão surpreendente: o público que vem consumindo os produtos da marca não acompanha a tradicional semana de moda. Mas a intenção de Gvasalia é justamente aproximar os dois mundos, “trazendo a alta costura para um contexto moderno e mostrando-a para o público atual”, como afirmou o estilista. Isso não quer dizer que as peças serão popularizadas. A coleção será para poucos, tanto pela extravagância dos trajes quanto pelo preço. Mas ao desenhar peças “agênero” e convocar um casting de modelos bastante diverso, ele mantém o aspecto aspiracional ao mesmo tempo em que humaniza o cuidadoso trabalho que envolve a alta costura.

Divulgação O CRIADOR O espanhol Cristóbal Balenciaga era considerado “o maior de todos nós” por Christian Dior e admirado por Coco Chanel. (Crédito:Divulgação)

O impacto do desfile também será sentido além das passarelas. Prova disso é a presença de outros designers na plateia, caso do rapper Kanye West, escondido sob uma máscara de rosto inteiro. Após uma passagem pela Nike, West vem desenhando roupas e tênis para a Adidas, e modelos como o Yeezy Boost 350 são hoje peças das mais cobiçadas. Fã declarado de grifes tradicionais, ele tem buscado referências nas semanas de moda ao desenhar suas coleções. “Ao levar essa inspiração para seus shows ou para suas próprias peças, essa teia de criatividade vai chegar a mais pessoas, que vão beber indiretamente da fonte da alta costura”, afirmou Muller.